Saturday, November 16, 2024

Rípio

no muro ao sol, pedras roídas

somam tempo ao tempo.

O tema, supõe-se, é paralelo

no muro à sombra

no mais sombrio poema


nos bois de cornos apontados

a outros bois, no pastor

cujo bordão é uma enxada:

mas espalha a luz o aço

ao trilho, da cunha à torre


de alta tensão, o firmamento 


nem sempre se faz pedra

boi, bordão, ou cunha igual —

busca-se outro elemento

ou novo material, ou o muro

tomba, continua a gente

Calar

a quase homonímia

emudecer

e humedecer

ou a antinomia

homo

e nemo


não a

    barca

o que cala o mar


a cada grau

re cru

de

    s

        cer


nau fraga

o espaço


da quilha

à linha 

______ d'água

Thursday, October 10, 2024

Desligar e não ligar


curto desse teu swag

tua esbelta silhueta

o people até se engasga

com a nossa pirueta

nós com os bofes de fora

eles todos upside down

bora pôr o mundo em off

depois outra vez no on


quero ter contigo um date

no teto do mundo a pique

chegas lá com o teu skate

eu tenho patins e bike

se te cansas guio eu

e tu andas à pendura

fazermos slide no céu

é uma mega loucura


mêmo uma cena marada

o clima ‘tá bué da hot

o people lá na bancada

gira todo num virote 

bora desligar, my love

bora pôr o mundo em pause

vamos sair e not

not voltar a entrar



Foto de António Carlos Pereira da Costa

Friday, October 04, 2024

Carregando o mundo

 

desde que o mundo é mar, gente pequena

na maioria mães, arregaça

de suas saias renda. De lá alça

o peixe que se enrola na morena

pele das pernas. De lá arrasta a alga

que por malhas e escamas se abraça

às faixas que no corpo a faina traça

O desenho e o desejo de tal cena:

a espuma na areia, febril cerveja

do oceano inquieto, mas sem pressa

avançando, ainda que mal se veja

o fundo onde se adensa, cresce, aquece

e acumula inércia; e a rede franze

num triângulo agudo cor de sangue




 













(poema sobre foto de Sinem Tas, "Carregando o mundo")

Monday, September 16, 2024

CERTA VEZ OLHEI PARA UM ESPELHO MAS NÃO CONSEGUI VER O MEU CORPO

                        a partir de Ghassan Kanafani

 

A minha argumentação é um documento; eu existo.

Aprendo isto de tanto ver o meu pai

 

sozinho à noite

traçando, retraçando 

um mapa

da Palestina, a tinta verde.

 

Antes de 1947, insistia ele, antes do retalho,

antes da nação se tornar história

 

antes de a minha língua confundir agradeço com sobrevivência

 

antes de eu escolher uma profissão que destaca

a morte da minha gente.

 

Uma máquina fotográfica derrete ao sol.

De muito longe, escuto os cliques moribundos do obturador, os pregões clamorosos 

     dos jornais 

que se atiram, o olhar cortante das órbitas.

 

Ergo-me diante do meu pai, as minhas próprias pupilas escancaradas

nos calos das suas mãos. Também eu desejo captar este momento,

 

retê-lo. Dizer, sim, esta violência é possível, e também dá prazer

olhar.

 

Mas quem é a audiência deste meu olhar

e até onde se espalha um flagelo

até amarelecer?



NOOR HINDI, in Dear God. Dear Bones. Dear Yellow, 2022, p. 6

Friday, September 06, 2024

Dupla Subordinação

 Diz-se que o santo, em sua humildade, expressara o desejo de ser enterrado no Colle d’Inferno, uma colina desprezada nos arredores de Assis, na qual os criminosos eram executados.  

                                                                                            Paschal Robinson, Vida de São Francisco

 

 

 

Como se fazia e ainda faz à criatura

cuja semelhança é dúvida e se tortura

investiga-se a coisa até só ser objeto

 

e ser possível

 

ver-se sofrer em direto. Também consola

achar que não tem alma o verme

que a sandália calca (só uma 

cedilha distingue o que pisa

do que enverga uma dupla sola)

 

São Francisco

 

mandaste para o Inferno teu próprio cadáver.

Aqui escande-se o Outro até o desconhecer.






Saturday, August 31, 2024

 

para quê escrever

o disforme

esporeia a tristeza

sela o pouco de beleza

outra montaria a pele

doada predadora

que extenua

a radiante fera —

acho ali está

afinal lá continua 

feia


para quê escrever se é disforme o que se escreve 

se o disforme esporeia a tristeza e sela o pouco de beleza 

ainda tangível ainda a flor tonal da pele?


outrora ou se outra fosse mais valia antes

montar a pele outra montaria a pele virável correria

predadora extenuada ah tanto de beleza e apoteose 


na radiante fera

e tu captora achas cá está ela tres-

passei-a no papel mas afinal lá continua e te devora feia


vagabunda lírica


tantos sulcos percorridos

hoje ocultos acamados

por outros pés nesses quartos
corpos em que enrolou

amarinhou quis muito 

alguns em todo 

o caso a maioria

 

nus 

 

para um crescer climático

ou final de despenho

à beira de matar

resgatar alguns

que empurraram a porta

depois bateram-na

dando por si trancada

sem estima sem ira

sem sentidos 

mónada na fechadura 

espiando temerosa

futuros desaparecidos

 

salvo exceções 

que não a envaidecem

e quase esquece

sem regozijo nisso

mas cujo nojo

procuro não procurar

(vai longe essa líbido

para o choro

sobre desperdícios) 

despido-nos normalmente

juro como se fôramos, átrios

 

nós

 

e se produzissem prodígios

Wednesday, June 26, 2024

Sobre espeleologia, ou o controlo da descida na doença da fronteira

Podes num dia com certeza

introduzir-te com frontal

pelos poços da alegria

ou pular da corda da tristeza


mas de cada vez a apneia

é mais breve

e a superfície escasseia

nestas zonas de conflito


ao todo a vertigem leva

quase menos do que o título



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