Tuesday, September 30, 2008

uma sapateira gigante



A mãe tinha saído. Eu tinha ficado na casa velha com a Mariana e a mãe dela, a Xana. Havia uma sapateira gigante que cuspia fogo e andava a destruir as casas todas mas não chegou a destruir a nossa. A Xana estava sempre a ir ver quando é que a sapateira cuspia fogo. O pai estava sempre a dormir. A sapateira não destruiu a nossa casa, mas ainda deitou fogo ao quarto da mãe. Só que não fazia mal porque a mãe estava noutro país. Era desse país, aliás, que tinha saído a sapateira gigante. Eu ainda quero comer uma sapateira, desde que não cuspa fogo
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Friday, September 26, 2008

Melancolia

A falta que me fazem os teus postais
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Friday, September 19, 2008

uma paciência de louca


– Mas, seja como for, o que faz um amor sem trajecto?

– Transforma-se noutra coisa, noutra coisa pesada ou acutilante que se traz cá dentro e se embrulha com a nossa própria matéria até deixar de doer.

(Iris Murdoch, A Severed Head)
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Thursday, September 18, 2008

Manel, Manel não me deixes aqui


O AZUL (L'AZUR)



Do Azul infinito a plácida ironia
Estupefaz, bela indolente como as flores,
O poeta incapaz que o génio repudia
Através de um deserto árido de dores.

Esquivo, fechando os olhos, sinto-o observando,
Com a intensidade dum pesar demente
Minh’alma vazia; onde fugir? Que nefanda
Noite lançar, estilhas, contra seu contempto?

Deitai, ó densas névoas, as cinzas monótonas
Com andrajos de brumas pelo firmamento
Para afogar os lívidos pauis de Outono
E edificai um tecto mudo e envolvente!

E vai-te, tu, dos lodos de Letes, e traz,
Na volta, os limos e os pálidos bambus,
Caro Tédio, para vedar com mão tenaz
Os buracos que as aves abrem no céu cru.

E mais! Que sem descanso as tristes chaminés
Fumeguem, que uma urna esparsa de fuligem
Soterre no terror do seu obscuro grés
O ocaso que eclipsa de ouro a vertigem!

Está morto o Céu! A ti acorro, ó matéria!
Faz esquecer o fero Ideal e o Pecado
A este mártir que partilha a liteira
Onde o alegre gado humano jaz deitado.

Que quero – pois enfim meu cérebro de areia,
Tal balde de verniz vazado ao pé dum muro,
Não tem mais arte de avivar a fraca ideia –
Bocejar plangente ante um trespasse escuro.

Em vão! O azul triunfa e escuto-o nos sinos
A cantar. Por minh’alma! A voz que toma assusta
Ainda mais com sua glória escarninha,
E o metal vibra e toca hinos de angelus!

Rola através da bruma antiga e trespassa
A tua dor nativa como espada rútila:
Onde fugir nesta revolta amarga e lassa?
Eis-me assombrado: Azul! Azul! Azul! Azul!

Stéphane Mallarmé

A foto vem daqui.
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Wednesday, September 17, 2008

Versão de Moon Chung-hee (n. 1947, Coreia)


a partir do inglês de Windflower, trad. Wolhee Choe e Robert E. Hawks

A ARANHA

Um corpo mais pequeno que uma lasca de pedra
defrontando o vazio infinito
desenrola de um coração apertado
sedoso fio que de outro modo se não concebe
nem pelo Sol majestoso.

Sem confusão
costura o vazio

de onde emerge uma teia magnífica.
Ressoa no seu frémito
o som primitivo de uma viola.

Asas de prata presas
esvoaçam no Sol do meio-dia.

Onde vos perdestes?

Nesta terra

onde rosas e criaturinhas brincam
testemunho
Deus.
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Monday, September 15, 2008

Declaração de Intenções

Para aqueles que insistem diluir
isto que escrevo aquilo que eu vivo
é mesmo assim, embora aluda aqui
a requintes que com rigor esquivo.

À língua deito lume, o que invoco
te chama e chama além de ti, mas versos
são uma disciplina que macera
o corpo e exaspera quanto toco.

Fazer poesia é árido cilício,
mesmo que ateie o sangue, apenas pus
se extrai, nem nunca pela escrita

um sólido balança, ou se levita.
Então sobre o poema, o artifício,
a borra baça, a mim a extrema luz.
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O Melhor dos Açores


se tu viesses desta vez é que eu não fazia perguntas nem poemas: já tinha aceso o bule para que as bocas mudas reservassem o mesmo aroma e se soltassem só com fins obscenos.
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Charles Simic

O blog do nosso quadro de honra está a publicar poemas de Charles Simic (n. 1938). Esta manhã apeteceu-me tentar este em português.

UM LIVRO CHEIO DE BONECOS

O Pai estudava teologia por correspondência
E era a época dos exames.
A mãe tricotava. Eu sentava-me calmamente
Com um livro cheio de bonecos. A noite caía.
As minhas mãos arrefeciam a tocar as caras
Dos reis e rainhas mortos.

Havia uma gabardina preta
No quarto de cima
A abanar do tecto,
Mas que estava ali a fazer?
As longas agulhas da mãe faziam cruzes lestas
Que eram pretas
Como então o interior do meu coração.

Voltava as páginas e soavam a asas.
“A alma é um pássaro”, dissera ele.
No meu livro cheio de bonecos
Eclodia uma batalha: lanças e espadas
Faziam uma espécie de floresta de Inverno
Em cujos ramos o meu coração se picava e sangrava.
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Monday, September 01, 2008

Rentrée

Este é da madrugada de hoje. Parte vem da Hélia Correia. Demorou meses.

FEITICISMO

É verdade que quando eu contigo
me inclinava o mundo por instantes
recuava. Entreguei-me a ti aberta
como nunca porque querias ver-me,
e já então pelos teus olhos eu

gozava. Quando, pois, te evaporaste
com uma assombrosa fixidez
mandei o espírito buscar-te o corpo
e amar nele e tornar-se um outro
que atravessava as tuas mulheres.

Investi a crueza que evitei
connosco: saciei-me assim de início
marcando até algumas, contra
a evidência de que entre dois
o mais violento não tem testemunhas.

Tanto me apliquei que cheguei a crer
que tu retribuías. Iludi-me
na complacência de, tomando outros,
me devolver também a ti. Porém,
foi-me custando mais a cada vez

voltar. Mergulhei, esqueci aos poucos
onde, entre este e aquele, arquejei
no engodo que chamei de nosso amor;
e raro sinto que ouça tua boca
resfolegar por sobre minha pele.
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