Saturday, December 30, 2006

Mais uma leitura de Plath, para o fim de 2006

PAPÁ

Já não serves tu,
Já não prestas,
Sapato preto
Em que vivi como um pé
Por trinta anos, pobre e branca,
Sem sequer ousar
Respirar, sequer, Ah-tchim.

Tive, papá, que te matar.
Tu morreste sem me dar tempo…
Pesado como mármore,
Um saco cheio de Deus,
Tétrica estátua com dedão cinzento,
Gigante como foca
De São Francisco.

E uma cabeça no Atlântico
De dar arrepios,
Onde verde-feijão se vai derramar
Sobre azul
Ao largo da bela Nauset.
Eu dantes rezava para te resgatar
Ach, du.

Na língua alemã,
Na vila polaca
Cilindrada pelas guerras,
Guerras, guerras.
Mas é vulgar o nome
Dessa vila.
Diz um amigo polaco

Que há uma dúzia delas.
Por isso não pude nunca
Descobrir onde foi
Que pisaste, que calcaste.
Não pude nunca
Falar-te, de língua
Pegada ao maxilar,

Numa cilada
De arame farpado.
Ich, ich, ich, ich.
Mal conseguia falar.
Achava que tu eras
Todos os alemães.
E a língua obscena

A máquina que engrena
A cuspir-me como aos judeus.
Um judeu para Dachau,
Para Auschwitz, Belsen.
Comecei a falar judeu
Acho que se calhar
Sou dos judeus.

As neves do Tirol,
A cerveja loura de Viena,
Não são verdadeiras nem castas.
Com a minha avó cigana
E a minha sorte madrasta
Mais as minhas cartas Tarô,
Se calhar dou para as bandas dos judeus.

Tive-te sempre medo
Com a tua Luftwaffe,
E a tua glote-glu-glu,
E o teu bigode aparado,
E o teu olho ariano azul.
O Homem do Panzer
És tu –

Ao invés de Deus,
Uma suástica muito preta
De forma que nenhum céu
Se esgueirasse pelas frinchas.
As mulheres gostam todas de fascistas.
A bota na cara, o coração bruto
Dum bruto como tu.

Foste chamado ao quadro, pai,
Na fotografia que eu tenho
Tens o queixo fendido
Em vez do teu pé,
O que não faz de ti
Menos diabo
Nem menos o homem preto

Que me mordeu em duas metades
O belo coração vermelho.
Tinha dez anos quando te enterraram.
Aos vinte tentei morrer
E voltar, voltar,
Voltar para ti.
Pensei que até os ossos bastavam.

Mas foram tirar-me do saco
E juntaram-me com cola.
E então eu soube
O que tinha a fazer.
Fiz uma réplica tua,
Um homem de preto
Com ar de Meinkampf.

E um gosto pela tortura,
Por tudo o que fura,
E anuí, Ah sim,
Assim: papá, fiz o recado.
O telefone preto
Foi arrancado pelo fio,
Não há voz que lá se possa enroscar.

Se matei um homem,
Vale o mesmo que dois…
O vampiro que fingiu que eras tu
E bebeu do meu sangue por um ano,
E, de resto, sete.
Se queres mesmo saber.
Já podes deitar-te na cama que fizeste

Que nunca ninguém da aldeia te amou.
Tens uma estaca
Nesse teu coração preto e anafado.
Estão a dançar e espezinham-te.
Sempre souberam
Que eras tu.
Meu papázinho, sacana, fiz o recado.

Saturday, December 23, 2006

Boas Festas



E se não fosse pedir muito era um 2007 completamente diferente

Legenda



deixa lá tu nem querias
eu é que tenho a mania
de ir de encontro a tudo
por nada

Wednesday, December 20, 2006

Anti-nefelibata

Se o Jesus está no céu, porque não tira de lá as nuvens?

Wednesday, December 13, 2006



Reincidindo, porque acaba de me chegar às mãos, por Ana Luísa Amaral, aquela que me parece ser a melhor das traduções em português do célebre Lady Lazarus.

LADY LÁZARO

Fi-lo outra vez.
Um ano em cada dez
Eu sou capaz -

Um milagre ambulante, a minha pele
Brilhante como abat-jour nazi,
O pé direito

Um pisa-papéis,
A minha face como um pano fino, sem contornos
Em linho judeu.

Tira o sudário,
Ó meu inimigo.
Aterrorizo? -

O nariz, as órbitas, completa, a dentadura?
O hálito azedo
Esfumar-se-á num dia.

Em breve, muito em breve, a carne
Que a gruta do túmulo comeu
Comigo viverá

E eu, mulher sorridente.
Tenho só trinta anos
E como o gato nove vezes para morrer.

Esta é a Número Três.
Quanto lixo
A destruir por década.

Quantos mil filamentos.
A multidão vulgar e curiosa
Delira ao vê-los

A despirem-me toda -
O grande strip tease.
Minhas senhoras, meus senhores

Eis as minhas mãos
Eis os meus joelhos.
Posso ser pele e osso,

E todavia, sou a mesma, idêntica mulher.
Tinha dez anos quando aconteceu pela primeira vez.
Foi acidente.

Da segunda vez quis
Que durasse e eu nunca mais voltasse.
Fechei-me toda

Como concha do mar.
E eles tiveram que chamar e chamar
E arrancar de mim os vermes, pérolas cravadas.

Morrer
É uma arte, como tudo o resto.
Faço-o excepcionalmente bem.

Faço-o para que saiba a inferno,
Faço-o para que saiba a real.
Podem mesmo dizer que tenho um talento especial.

É fácil fazê-lo numa cela,
É fácil fazê-lo e ficar direita.
É o regresso

Teatral, em plena luz do dia,
Ao mesmo sítio, à mesma cara, ao mesmo grito
Divertido e bruto:

"Milagre!"
Dá cabo de mim.
Há um preço

Para ver as minhas cicatrizes, há um preço
Para ouvir o meu coração -
É que ele bate mesmo!

E há um preço, um preço muito alto
Por uma palavra, ou um toque
Ou um pouco de sangue

Ou um fio do meu cabelo ou um fio da minha roupa.
Vá lá, Herr Doktor.
Vá lá, Herr Inimigo.

Sou a vossa obra de arte,
A vossa peça de maior valor,
O bebé de ouro puro

Que se derrete como um grito.
Viro-me e ardo.
Não penseis que subestimo o vosso interesse.

Cinzas, cinzas -
Atiçais, revolveis.
Carne, osso, nada disso existe -

Um sabonete,
Uma aliança,
Um dente de ouro.

Herr Deus, Herr Lucifer,
Tremei,
Temei.

Das cinzas
Ergo-me, o cabelo em fogo,
E devoro homens como ar.

Sunday, December 03, 2006

A realidade supera em muito a wikipédia



Mas seja como for aqui vai, com um bem hajam, para todos os que por mim foram iniciados neste culto e que noutros cultos me iniciaram. Não, isto não tem que ver com ortógonos templários, mas, como alvíssaras, oferecem-se alguns anos de indulgência (cada caso é um caso) a quem conseguir apontar e corrigir todos os erros do verbete.

"A Capela de Nossa Senhora do Monte ou Ermida da Senhora do Monte, encontra-se na freguesia da Graça em Lisboa.

A primeira ermida que existiu, perto deste local, foi construída em 1147 após a reconquista da cidade de Lisboa. Foi dedicada a São Gens que tinha sido bispo da cidade muito antes da reconquista e que teria sido martirizado neste local. Os frades Agostinhos, que tomaram contam da ermida, colocaram no seu interior, a cadeira de pedra que pertencera ao santo. À volta desta cadeira surgiu uma lenda segundo a qual, as senhoras grávidas que lá se sentassem, tinham partos sem complicações. A própria mulher de D. João V, D. Maria Ana de Áustria, foi lá sentar-se quando estava grávida do herdeiro do trono.

Após o terramoto de 1755, que foi devastador em toda a zona circundante, a ermida ficou praticamente destruída. A actual ermida, foi construída em 1796, um local um pouco mais acima do local original e é obra do arquitecto Honorato José Teixeira. No seu interior foi de novo colocada a cadeira de São Gens."


Aqui, de onde foram retiradas as fotos de injustiça para com o real ainda mais flagrante do que a wikipédia, mas com legendas inegavelmente superiores na aprimoração escrita, acrescenta-se que São Gens era um "mártir da ocupação romana e padroeiro dos actores cómicos, que pregava aos cristãos e, por isso, muito venerado no reinado de D. Afonso Henriques", e que "na entrada do templo ainda se conserva a cadeira de pedra do bispo de S. Gens". Pode ser que sim, mas está fechada atrás duma portinha, eu nunca vi. Em contrapartida, tenho lá visto cousas tam extraordinarias e maravilhosas que nam conto por receio do mor escarnio que me possa advir dos que, piores do que sam tome, nem vendo com os olhos da cara, nem tocando com os dedos das mãos, abrem ao mundo as pupilas do coraçam e dispoem o espírito a acolher o tacto e o sabor da mais gozosa paixam.

Friday, December 01, 2006

Transatlântico

Were I an American
I would make myself
an eyeball
all-mighty

Nonetheless
this body of mine weighs me
down-to-earth
matter-of-factly
I heave heavily
the air ten inches thick
I sink while I breathe
I exhale
not a thing
I reflect
not a fling.



Fosse eu americana
faria comigo um globo
ocular

Todavia
finca-me o corpo
terra-a-terra
Arfo arco
o mundo aos pés
Tortura-me o ar
a uma grossura de dez polegadas
Afoga-me respirar
Fôlego que valha
não exalo
Não refracto
uma centelha.

Thursday, November 23, 2006

A Imagem Romântica



Há outras coisas, Horácio,
e a tua filosofia é barata,
na verdade não custa fixar
as coisas ideais à distância:
terás vista panorâmica
mas sempre a visão é polémica.

Gostava que alguém me mostrasse,
mas não terei nunca garantia
de que envelhecer faça sentido.

As pessoas prostram-se, queremos que nos digam
porquê não haver luz nos seus rostos. Crestam
os cravos, antes rubros. Não há modo
de saber se as monarcas
têm memórias arenosas de lagarta.
Tudo sucede dentro de estanques
casulos, a seda é densa,
não se faz ideia
se isto acaba. Estrelas foscas
correm, pessoas morrem, a vida
é breve, impávido o
real que ansiamos designar.
Comparar é colidir: o verbo
talvez nos leve
a mais nenhum sinal.

Tuesday, October 24, 2006

Estou a arder

Não deixa de ser uma coisa bonita de se dizer, e decerto não pensaria nisso se estivesse num forno crematório. Mas há de facto qualquer coisa a queimar dentro de mim: um consumo físico. Tira-me peso. Está a tentar tirar-me o corpo. E ele faz-me falta. Uma hora para arrumar papéis. A quem ando eu a tentar enganar?

Friday, October 20, 2006

Ser Homem

Não é preciso um homem ser
bendito entre as mulheres
para agradar ao par.

Não é preciso um homem ter
nas mãos o testo ou à cintura
briosa a bilha balançar
ou fabricar candura.

Um homem pode não ser
mãe e até ter
filhos mesmo mamas
costuras na barriga
que o período o não inibe
da literatura.

Um homem pode ser
lúbrico louvar o mal
e sem olhar a quem
há certos que se mandam para o mar
e firmam fama de artistas
sei de cor a epopeia
venda-se o olho sendo a vista dura.

Um homem inclusivamente pode
chegar à lua
e reluzir no espaço
a pila ao léu.

O que não pode um homem
segura a dama sua.


(com toda a carícia para , que não tá nem aí pra quem eu sou, e mesmo que seu novo release deixe em parte a desejar é talvez por isso: quando a gente cuida é claro que a gente curte música de foda)

Monday, October 16, 2006

Now you look here, Tzeni

To choose and to dance have to do with desire.

Sunday, October 15, 2006

Nossa






como CRESCEU!

Do consumo do desejo

Como saber se isto é o esforço
que pede à carne o espanto do mundo,
ou se é pretensão de arte o esquecer
à porta toda uma noite a chave
para acolher cupidamente
o imprevisto o amor a rapina
na ânsia excitada do que somos
a seguir capazes de fazer?

se é este o estrénuo abandono
ao inquieto instante ou se antes
nos ilude a evasão? tão ténue
a fronteira entre a fuga e a oferta.
Tu estás do outro lado e eu não
sei como chegar e se escavar
um túnel sob o mar pode haver
maior exumação antes de ti:

tudo o que sepulta o passado –
ruínas de outros, o mudo lodo
sem que haja o modo de dragar;
e o dilatar-se o curso e não
cumprir-se o nosso encontro. Mau grado
a grande apneia o imenso hausto,
cruzam-se os destroços e entravado
o túnel cerca e serpenteia

eu devia ter tentado o voo
porém faltava-me o equilíbrio;
devia ter optado pelo arroubo
todavia não sabia preces;
não tinha a palavra de salvar,
a senha que consagra e exonera;
só tinha este corpo para entrar
e um tacto insolente para abrir.

Thursday, October 12, 2006

Regulação Parental

Fiz mal as contas do post 115. Este é o post 116.

Monday, October 09, 2006

Polegarzinha

(com gratidão para a Vanda Melo)

Refaço o percurso, detendo-me para trincar cada côdea a marcar a volta à casa partida.

Saturday, October 07, 2006

Kit de Sobrevivência da Poesia Portuguesa # 1

ALBA



Levad' amigo, que dormides as manhanas frias:
todalas aves do mundo d'amor diziam,
leda m'and'eu

Levad' amigo, que dormides as frias manhanas:
todalas aves do mundo d'amor cantavam,
leda m'and'eu

Todalas aves do mundo d'amor diziam
do meu amor e do vosso en ment'aviam,
leda m'and'eu

Todalas aves do mundo d'amor cantavam;
do meu amor e do vosso y enmentavam
leda m'and'eu

Do meu amor e do vosso en ment'aviam;
vós lhi tolhestes os ramos en que siiam,
leda m'and'eu

Do meu amor e do vosso y enmentavam;
vós lhi tolhestes os ramos en que pousavam,
leda m'and'eu

Vós lhi tolhestes os ramos en que siiam,
e lhis secastes as fontes en que beviam,
leda m'and'eu

Vós lhi tolhestes os ramos en que pousavam
e lhis secastes as fontes u se banhavam
leda m'and'eu

Nuno Fernandes Torneol

Friday, October 06, 2006

Play Dough


se trabalharmos em conjunto tudo vai ser sempre muito mais rápido

Sunday, October 01, 2006

Teatrinho


... e então apareceu o caranguejo birrento à procura do peixinho, só que o peixinho já se tinha escondido na sua concha preciosa porque pensava que não tinha mais com quem brincar, e também tinha ido escrever poemas tristes.

Monday, September 25, 2006

deslocalização da Primavera

a despedida de Setembro, o diagnóstico de Outubro
dão azo desta vez a uma melancolia remota
tão somente, gralhas que não gritam neste calendário
decerto extemporâneo; pois somos nós o mês de Maio,
migrantes pássaros não tementes já dos dias curtos;
que deslumbradamente as penas luzem: invés de cinza,
uma patine de prata – vantagem devida à lua
que roda e dura agora mais que o sol – e o tempo assim
é amor que não azeda na demora da reserva

Saturday, September 23, 2006

car (après tout)

la vie est à peu près le seul luxe ici-bas

Thursday, September 21, 2006

Eu cá não fazia fiado na fé deste Papa

(reflexão automática após conversa sobreouvida na mercearia:)

D. Georgete: O outro, sabe, era mais prudente.
Cliente do Cão Zulu: Pois, mas eu acho que há coisas que se dizem de boa fé e outras de má fé. E este se calhar é mais inocente, mas não quer dizer que não seja de boa fé.

Monday, September 18, 2006

Porque sempre que tenho arrufos com a maternidade me lembro



e lembro também um certo ex-aluno – dos que soe dizer-se “problemáticos” – cuja voz se lhe embargou quando lhe pedi para ler este texto do Almada, e ainda porque ontem, pelas 20h00, a Elisa viu nascer a Maria Rita.

“Mãe! Vem ouvir a minha cabeça a contar histórias ricas que ainda não viajei! Traz tinta encarnada para escrever estas coisas! Tinta cor de sangue verdadeiro, encarnado! Eu ainda não fiz viagens E a minha cabeça não se lembra senão de viagens! Eu vou viajar. Tenho sede! Eu prometo saber viajar. Quando voltar é para subir os degraus da tua casa, um por um. Eu vou aprender de cor os degraus da nossa casa. Depois venho sentar-me a teu lado. Tu a coseres e eu a contar-te as minhas viagens, aquelas que eu viajei, tão parecidas com as que não viajei, escritas ambas com as mesmas palavras. Mãe! Ata as tuas mãos às minhas e dá um nó-cego muito apertado! Eu quero ser qualquer coisa da nossa casa. Eu também quero ter um feitio, um feitio que sirva exactamente para a nossa casa, como a mesa. Como a mesa. Mãe! Passa a tua mão pela minha cabeça! Quando passas a tua mão na minha cabeça é tudo tão verdade!”

Monday, September 04, 2006

Não está estafado, nem o poema nem o tema, e aliás a questão é: o que se faz a seguir a isto?

Levou-me o meu amado pelas câmaras da festa,
e era o amor o estandarte que ele abria sobre mim.

- Dai-me bolos de passas, reanimai-me
com maçãs.
Porque eu estou doente de amor.

O seu braço esquerdo está debaixo da minha cabeça,
o seu braço direito aperta-me
fortemente.


Suplico-vos, ó raparigas de Jerusalém,
pelas gazelas, pelas corças dos campos,
não acordeis, não acordeis o meu amor, antes que ele
o deseje.

excerto de Cântico dos Cânticos, tradução de Herberto Helder, ilustração de Marc Chagall

Friday, September 01, 2006

Exercício expurgatório

Escrever 100 vezes:

amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir amar é poder saber deixar partir

Voluntariado Infantil



Quando me caírem os dentes, se a fadinha me puser dinheiro debaixo da almofada, dou-to a ti.

Wednesday, August 30, 2006

Transfer

Que caiba na escrita tudo o que enegrece:
às palavras a escória, a mim a luz coada.

Saturday, August 26, 2006

Sabes que

mesmo quando eu me zango contigo eu estou feliz contigo.

Wednesday, August 16, 2006

POST 100: Xantipa, a Megera




Pudera. Ela até podia ter estofo para a maiêutica e pedalada para o peripatetismo. Mas tenho para mim que o que lhe deu a volta ao miolo foi a petulância do "conhece-te a ti mesmo/a".

Saturday, August 12, 2006

Introdução aos Estudos Linguísticos


Não se diz mais grande porque maior é mais grande que mais grande.

Sunday, July 30, 2006

Woman Overboard

MAYDAY lanço, porque a guerra dura



e está vazio o vaso em que parti
e cede ao fundo onde a vaga fura,
drena a fissura, uma falta – não
um tarro de cortiça que vogasse;
especifico: é terracota e fractura,
e eu sou esparsa, e a liquidez maciça.
Tarde, sei, será, se vier socorro:
se transluz pouco ao escuro este sinal,
e a água não prevê qualquer escritura
se jazo aqui: rasura apenas, branda
a costura, em ponto lento a onda
fará um manto sobre o afogamento.

Wednesday, July 19, 2006

Post Scriptum

COM-PAIXÃO & HIPOCONDRIA

Confortamo-nos com histórias laterais,
esquivamos o toque, há risco de contágio;
e, por mais que preservemos a franqueza,
passou o estágio da frontal alegria:
estamos bem, obrigada, embora aquém
de antes – entretanto admitimos não
saber, e enquanto resta isto indefinido,
mesmo com luvas, pinças de parafina,
não sondamos mais, sob pena de crescer
um quisto nesse incisivo sítio onde
achámos sem tacto que menos doía.

Tuesday, July 18, 2006

Pousio



Este blog entrou em estado de conserva vegetativo. Será reanimado lá para Setembro. Bem hajam, até lá.

Saturday, July 08, 2006

Female Bonding # 4?



HETTIE JONES & AMINA BARAKA

E este, jovens mulheres,
é o dilema

ele mesmo a solução:

sempre fui ao mesmo tempo
muito mulher para me comover ao pranto
e muito homem para
conduzir meu carro em qualquer direcção.

(final do poema Hard Drive, de Hettie Jones, n. 1934)

"Há quem pense que a força está na perseverança; às vezes está no deixar ir"
(Amina Baraka, n. 1937, poeta, cantora de jazz e jornalista no órgão de propaganda de esquerda "People's Weekly World")

As duas mulheres foram companheiras do poeta actualmente conhecido por Amiri Baraka, n. 1934, antes associado ao movimento beat com o nome de LeRoi Jones. A mudança de nome deu-se no período quente de meados de 1960 com a radicalização da luta pela afirmação identitária dos afro-americanos (nomeadamente, em sequência do assassinato de Malcolm X) Muitos negros recusaram então os antropónimos que julgavam herdadados dos esclavagistas do passado, optando por nomes de origem africana. Amiri, ao que parece, significa "príncipe", e Baraka "benção". A questão torna-se controversa e irónica quando comparada com as mudanças de nome por que optaram as mulheres daquele que recentemente reconquistou notoriedade com o poema activista "Somebody blew up America". Hettie Jones, nascida Cohen, branca e de ascendência judia, mudou o apelido para "Jones" quando se casou com LeRoi numa cerimónia budista em 1958. Divorciaram-se em 1965 e no ano seguinte o escritor casou com a cantora negra Sylvia Robinson que viria a mudar para "Amina Baraka", significando o nome próprio "leal e fiel". Pelo menos em autógrafos recentes, a actual mulher do ex-poeta laureado de Nova Jersey assina apenas "Amina".

Saturday, July 01, 2006

Aos meus amigos # 2

FOI BONITA A FESTA, PÁ

"And I'll see if my friends are still there:
Yes, and here's to the few
Who forgive what you do
And the fewer who don't even care"

(Leonard Cohen)
Obrigada

Thursday, June 15, 2006

Beleza é fundamental

Não é importante ser-se mais bonito. É importante ser-se bonito. Eu era Leonor Borboleta e tu eras Pedro Cravo.

O meu primeiro silogismo

Se tu estás a dormir tu não te zangas
tu só te zangas quando não estás a dormir

Sunday, June 11, 2006

Aos meus amigos

(especialmente aos mais belos recém-esposos do 10 de Junho)



A MESA TRANS-POSTA

se ao coração se vai pela barriga
dou a minha vulnerabilidade
em troca dum regalo de comida

Friday, June 09, 2006

Talvez a injecção letal

não precise ser fatal
após o incerto cruzeiro
após pagar ao barqueiro
dos lameiros de Aqueronte
que pode bem ser bifronte
velho sátiro ou Morgana
criatura quase humana
que tudo engana consoante
se olha pra trás ou diante

tão cansada de engolir
comprimidos sem dormir
do meu sexo que se embota
do coração que se esgota
esticado na horizontal
sob uma agulha sensual
e a sopa na panela
embacia-me a janela
e sorvo mas sem palato
sem ter forças para o salto



se há uma falha um abalo
Dickinson Plath Woolf Kahlo
onde foram estavam loucas
queriam coisas eram ocas
queriam chique eram pedras
queriam arte eram merdas
tentando o voo eram estacas
punho em riste eram farpas
fornos hortos seu delírio
nunca foi santo martírio

da fonte de Lete das letras
dos opostos caracteres
desconheço o que esquecer
se a vida sobre ou subterra
e se a barca vai na esteira
da nascente derradeira
ou duma foz mais absconsa
sem que embale a brisa ondas
sulcando turvas manhãs
duma ilha de maçãs

Sunday, June 04, 2006

Se calhar é por isso que eu me pelo pela Sintaxe

Aos cuidados de e de:

O Léxico tem sexo; a Morfologia tem géneros; o Sentido é filho da mãe que, não desfazendo, é a Semântica; só a Sintaxe permite sintéticas manipulações de genética, como por exemplo:

1. Agente de crime violento é inimputável.

2. Vítima destituída de reparação de danos.

3. Crime violento passa impune.

Todas estas opções têm as suas consequências. Mas podemos escolhê-las. Não podemos escolher que "vítima" seja um substantivo invariavelmente feminino nem que "agente" seja invariavelmente masculino.
Salvaguarde-se a paridade de "inimputável", "imputável", "impune" e "punível" serem todos hermafroditas (sujeitando-se inclusive a brejeiras pintelhices com putéfios e punhetas).

P. S. Se, por improvável hipótese, alguma alma penada, que não esteja na praia nem a curtir o arraial do meu bairro, tiver passado por aqui reiteradamente nos últimos quarenta minutos constatará que este post sofreu várias alterações. É que também me pelo pela palavra justa e pelo justo vocábulo.

Efemérides #2: A LEBRE


Regozijemo-nos, associando imagem consonante com o feliz aniversário e com o espírito santo de baixo. Parabéns.

Pentecostes

“Porque eu rezo numa LÍNGUA DESCONHECIDA, o meu espírito reza, mas a minha compreensão é estéril” (Primeira Epístola de Paulo aos Coríntios)



Segue excerto do “Boletim Paroquial”, emitido pela Igreja da Graça para a Paróquia de Santo André e Santa Marinha em Lisboa, nº 37, 4 de Junho de 2006; editado por mim, com ecumenismo e respeito por crentes e não-crentes (as maiúsculas correspondem a expressões em itálico no original, mas ainda não aprendi o código para fazer isso):

“Na festa de Pentecostes, em que se juntavam em Jerusalém muitos judeus vindos de todas as nações, os apóstolos falaram do Evangelho (…). E todos os presentes entenderam bem o que lhes era dito, apesar de falarem línguas diversas. (…) FALAR A MESMA LÍNGUA significa estar em comunhão com todos. Infelizmente, as pessoas às vezes falam, utilizam as mesmas palavras, mas não se entendem. (….)
Deixemo-nos invadir pelo Espírito Santo*; punhamos de lado o medo e a indolência. Saiamos do CENÁCULO do medo (…)”

* O Espírito Santo, para mim, como crente e não-crente, representa precisamente a coragem de procurarmos um entendimento, um espaço médio, ou mesmo uma fugaz comunhão, por entre as línguas múltiplas de que nos servimos. Nesse sentido, e reiterando um dos pontos talvez mais sensíveis do texto que há dias afixei, se houver (boa?) fé, julgo que a tradução é um seu artigo transitivo fundamental.

Wednesday, May 31, 2006

1º DE JUNHO: Quando eu for grande eu não vou combater

Como eles somos livres



de voar / de dizer / de crescer: em diante, um bocado ao lado, até um poucochinho para trás, e quase sempre em ziguezague (porque é o único programa que os meus pais me deixam ver na TV, embora não saibam que eu às vezes faço zap para a Floribela)

Monday, May 29, 2006

Dar o Salto




Imagem delicadamente transviada deste acervo. Porque há furtos brancos no comércio do espírito.

Thursday, May 25, 2006

OBA

vou ganhar uma trotinete!

Saturday, May 20, 2006

Trans-poética



HOTEL LOUNGE

Entre vocês e eu na arriscada
via rápida dos artistas há
um baldio de línguas que se
tresmalham incandescem e internamente
queimam os ouvidos: pares poetas eu
lamento discordar mas
sendo
a poesia
o que perde a tradução
há então mais importantes coisas
que guardar e eu não vejo forma
outra de sair deste férvido ruído
senão o esforço extreme e distendido
no transporte de chegarmos.

Quão arriscadamente – é o nodo
central desta questão – nos dispomos
a correr entre as línguas a arder
e se escrever vale de outro modo.

Por exemplo o nosso lounge
no hotel, pode ser um espaço
franco de chegarmos face
a face? e caso isso suceda
é prudente
defendermos a cilada
do comum e do corrente?

Pares poetas eu lamento discordar
mas na arte vejo alvos desiguais:
ter em vista o chegarmos a outrem
ou escudar a perda que se arrisca
e para mim é o primeiro que convém.

E mesmo assim no lounge do hotel
se enfim depositamos os punhais
no parapeito do balcão – rondando
estrangeiros num abrigo as bebidas
e as pontas de vidas e cigarros –
será jamais possível emalhar as nossas
línguas sem cair no brejeiro trocadilho
e no perverso lenocínio de um verso?
e vão tomar-me por aquilo que eu sou ou
por aquilo que em mim miram e pode haver
uma outra via de sair a via
de fazer um esforço mútuo
de mudar-nos e folgar quando falamos
o freio do orgulho de ser únicos?

Embaraça-me, pares poetas, discordar
do vosso tão distinto parecer
mas agradeço todavia essas vias
lenitivas no encontro de chegarmos
à provisória e aturdida comunhão
entre o médio-transitivo território
de um lounge num hotel.

Thursday, May 18, 2006

e o teu barco negro dançava na luz

outro poema de Ady Endre traduzido por Ernesto Rodrigues, e que foi silenciado por alfnete, apesar de ter andado a rondar a página



MULHERES NA PRAIA

Estavam na praia mil mulheres,
tendo seus lenços, e com flores,
que soluçavam nos adeuses,
e eu no barco jubilei.

Veio crepúsculo; em névoa,
estavam na praia mil mulheres.
Mas inda vi os lenços delas,
mas as flores inda caíram.

Veio a noite e escureceu,
como o passado, qual vingança;
estavam na praia mil mulheres,
e eu no barco que chorei.

Porque não via já nenhuma,
nem sequer lenços, flores sequer,
e ouviu-se assim, qual numa história:
«Estavam na praia mil mulheres».

Monday, May 15, 2006

Desejo



ter uma querida fofinha
gatinha Teresa
que não faça mal a ninguém
e que seja toda minha

Friday, May 12, 2006

d. A. (depois de Adília [Lopes])

enquanto tais poetisos obscuros
tanto mais
precisa a desassombrada poeta

Sunday, May 07, 2006

do teu nascimento

como eu palavras busco que pensar
o amor que em dor se haure e me sufoca
meu leite busca brusca tua boca
do ventre que acabou de te soltar,

me assalta primitivo o incontido
materno sentimento imprevisto
dos corpos fluidos mútuos e vertidos
que um no outro se acham repetidos;

e se recolhe enfim teu cenho feio,
teu choro sem governo no meu colo
sossega e dá lugar, sugando o seio,

a um semblante humano que consolo.
De ti esperei tudo e agora isto:
que em ti o excesso meu se ache visto.

Wednesday, May 03, 2006

Revista do Portugal da outra senhora

A propósito do primeiro número, dedicado a Afonso Henriques, da história infatilóide da nação que está a ser publicada serialmente pelo Expresso na colecção “Era uma Vez Um Rei”, já aqui o Camarada D deixou pertinentes considerações, a que se podiam acrescentar ainda mais, como o maniqueísmo racial com que se perpetua a versão heróica da vitória dos pequenos e honrados portugueses contra os numerosos e avassaladores mouros. Mas é sobre o nº 4 da referida colecção, dedicado a “D. João I, O de Boa Memória”, que gostaria agora de ventilar a minha fúria de feminista compulsivamente pirómana de soutiens (cf. comments a este post). É que, relativamente a duas das mulheres mais interessantes da nossa história que marcaram este período, Leonor Teles (dita “a aleivosa”) e a lendária padeira, aka Joana Brites de Almeida, que abateu sete espanhóis saídos de um forno de Aljubarrota, o livro - caucionado, tal como os restantes, pela “revisão científica” [sic] da Associação de Professores de História, escrito por uma donzela finalista de Psicologia (!!!), narrado pela consorte dum intelectual socialista, e com ilustrações do filho dum poeta da intervenção pela liberdade de Abril - mantém uma impávida omissão. Em contrapartida, numa das canções festivaleiras que pontuam assiduamente esta série, só uma figura feminina é digna de singularização nominal, D. Filipa de Lencastre. E nestes termos: “[D. João] Casou com D. Filipa, / Rainha e mãe virtuosa / Que educou bem os seus filhos, / Sendo honesta e caridosa.” Concede-se ainda, noutra das cantigas, a que festeja a Batalha virilmente chefiada por Nun’Álvares (com esta pérola versejante do cançonetismo popular, “Com a táctica do quadrado / Damos conta do recado”), dar voz ao feminino, mas, não surpreendentemente, em indistinto coro e contraponto de “mulheres”. E que cantam elas? “– Lá estão os nossos maridos / Nos campos, a combater. / Façamos uma sopinha, / Para melhor os receber…”



Face a isto, com masoquista ansiedade, aguardo ardentemente o único número da colecção dedicado a uma gaja que, à falta de melhor varão, conseguiu trepar à hierarquia do trono: “D. Maria II – A Educadora”. É o décimo primeiro. Se é mãe, ou pertence ao grupo de risco das que podem vir a sê-lo, faça já a sua reserva. Sob pena de descurar a cultura genérica de suas filhas e filhos.

(foto: insígnia das enfermeiras da Cruz de Aviz)

Monday, May 01, 2006

Confissões de uma infanta que diz que eu não posso ser menina



Eu não tenho culpa de pistolas
Não tenho culpa de espadas
Tenho culpa de portas
Tenho culpa de casas

O meu coração descolou-se

Sunday, April 30, 2006

Efemérides # 1

DIA DO TRABALHADOR,




em feliz sintonia com o aniversário natalício do blogger Camarada D aka Alexandre Dias Pinto. Parabéns, portanto, para todos nós.

Thursday, April 27, 2006

Pequena provocação



Desconfio, Tolstói, que não nos estávamos a entender:
Deixei que me pintasses por ter lido algures
não ser raro o artista tornar-se o retratado
mas cedo admito surpreendi em mim os teus trejeitos
que eu era um modelo às tuas poses obedecia inclinava-me
consoante me olhavas abstraía-me quando diluídas
tuas pupilas na função de me não veres erecta não havia
qualquer desejo entre nós eu simplesmente morria
no fim sabias disso desde o início eu sem qualquer mansidão
devo dizer-te esperei que mudasses de ideias não consegui
jogar contigo seria aliás delicado não me teres matado assim
como no início mas ias lá defraudar tão fáceis auspícios
prevendo homem cruel de antemão entre todos que jamais
me escreveram o deselegante desfecho meu corpo
de mulher perdida ao assalto da locomotiva os braços ao acaso
não balançavam já quiseste partir-me e veres de que me fazia
tiraste-me um filho tiraste-me dois deste-me mais que um homem
e sequer em troco te ocupou montar-me passe o obsceno chiste
achaste que devia perder-me mas foi quando comecei a cansar-te
e todos os sobrenomes e o espírito e as relações que me atribuías
fruto de um complexo sistema linguístico polida a falsa
intimidade nada daquilo me dizia tal como os meus olhos
repara não foram nunca escuros e tão pouco coruscantes
que o magnetismo é coisa de animal eu queria
ser pessoa sem disfarçados cordéis sem truques eu queria
tréguas mandava às urtigas o teu romance eu queria
a verdade ao passo que tu com critério julgavas escolhias
o tom pastel que melhor me assentava e dizias são escuros
enquanto eu para variar tentava ver-me no teu papel e claramente
te fixava custou tanto que não pude desistir e afinal depois
de tanto esforço entendi absolutamente nada eras quem
me lias e eu quem não existia e esse enjoo
da fêmea em que se entra e a outro voo é interdita já então
eu definhava sob tua pena hirta pouco fui
capaz espreitando por teu ombro de corrigir-te a mão
bom seria sermos quites porém ainda não em paz.

Anna Karenina

Monday, April 24, 2006

e sempre

Trabalhador


colhendo cravos para uma creche no sul da Califórnia

Saturday, April 22, 2006

Horrível

esta noite foi como se fosse um sonho histérico

Friday, April 21, 2006

Condição

Não sou mulher-mãe
nem sou musa de ninguém.

O papel de parede amarelo



Descobri realmente qualquer coisa enfim.
De tanto o observar à noite, quando está constantemente a mudar, eu enfim descobri.
O padrão na superfície move-se de verdade – e não admira! A mulher por trás abana-o!
Às vezes acho que há uma quantidade fabulosa de mulheres por trás, e às vezes que só uma, e que gatinha velozmente em redor, e ao gatinhar abana aquilo tudo.
Depois, nas manchas muito brilhantes fica quieta, e nas manchas muito na penumbra agarra-se às grades e abana-as com muita força.
E está constantemente a querer trepar por ali. Mas ninguém seria capaz de trepar por aquele padrão, que estrangula de um modo tão brutal; acho que é por isso que tem tantas, imensas cabeças.

Charlotte Perkins Gilman in “The Yellow Wallpaper” (1892).

Epifania das Batatas-hóstia

Conheço o descendente de quem as inventou!



Batata frita Pala Pala
É uma tara de sabor

Saturday, April 15, 2006

A Paixão, segundo infante

Falta muito tempo para morrer e falta muito tempo para viver.

Se não há partilha,

o artista é quase tão aberrante como um padre que celebrasse a missa só para si.

Adília Lopes (citada hoje, no Mil Folhas, por EPC)

Female roles #1 (ou a goma nos naperons)


MORRE COMIGO ESTE SEGREDO

faz-se a renda juntando os quadrados
em fiadas, uns que se abrem e outros
que se fecham, é fácil mesmo de olhos
vendados, como agora nesta casa
onde vivo emparedada entre lágrimas
crónicas de cataratas e os ratos
que me atacam as crostas do telhado,
esta casa onde nasci e onde hoje
só a morte espera ainda que eu
já não espero nada, sepultado

o pânico da vida sem eventos
durmo de um só sono à noite com
os meus medicamentos e a Bíblia
à cabeceira, no canapé a colcha
por acabar que é para o enxoval
da filha da afilhada – tantas vezes fui
madrinha no altar, até dos manos
que vinham de visita aos domingos
mais as cunhadas prenhes e ufanas
sem saberem felizmente que a vida

que me não quis amada me fizera
amante insana em tempos pubescentes
nessa época antiga do recente
mênstruo empolgando os animais,
mergulhando-me e às amigas no
mistério das regras mensais do corpo
ainda irregular, nesse outro tempo
dizia em que um estrangeiro me apartou
das alegrias do gineceu e me deu
a conhecer o intranquilo apelo

que com desconforto rompeu
o retráctil selo do meu sigilo—
e porque ainda em flor fui desflorada
nunca mais quis eu o amor nem ser
casada, e portanto que escarneçam se
quiserem as cunhadas cobiçosas,
levem-me os móveis mas deixem-me a casa
onde fui nada e fui criada que sem
a deixar nunca me valeu o ganho
das rendas que me pedem de encomenda,

e em tudo o mais levo eu vida piedosa,
cumpro os ofícios na missa e recolho
o ofertório finda a homilia;
só eu sei da lingueta do ferrolho
onde fulgem as jóias da família.

Thursday, April 06, 2006

La Belle Dame Sans Merci




CANÇÃO

Em minha sepultura,
ó meu amor, não plantes
Nem cipreste nem rosas;
Nem tristemente cantes.
Sê como a erva dos túmulos
Que o orvalho humedece.
E se quiseres, lembra-te;
Se quiseres, esquece.

Eu não verei as sombras
Quando a tarde baixar;
Não ouvirei de noite
O rouxinol cantar.
Sonhando em meu crepúsculo,
Sem sentir, sem sofrer,
Talvez possa lembrar-me,
Talvez possa esquecer.

Christina Rossetti, tradução de Manuel Bandeira; a pintura tem o título do post e é do pré-rafaelita Cowper.

Tuesday, April 04, 2006

Fiquei com uma bola de neve no coração.

Tuesday, March 28, 2006

Female bonding # 3


para a allegra e a lebredoarrozal (esperando assim ser absolvida de furto de imagologia)

HAVERÁ ALGUM SENTIDO POR FORA DESTE SONHO?

As correias são frouxas
é frágil a bagagem
uma bata infantil
espreita dos caixotes
ela deslaça-me a mão
aflita e dócil
Na orientação dos adultos

eu não consigo partir
São precisos os carimbos
do passaporte as notas
lilases do monopólio:
$339 para começar—
um rigoroso cálculo
a apontar a confusão

As escadas rolantes
são escorregas desencontrados
o elevador encrava
o terminal tem sentidos escondidos
a bateria escangalhada não
dá sinal a menina apita
no embalo na descida

estamos nisto
há várias voltas
Colei as mãos ao volante
a criança desapareceu
agarrada a um biscoito
pelo espelho retrovisor
Apesar dos meus esforços

apesar de saber
que é um pesadelo comum
Ao último minuto
acorda-se Alice
está pronta para a partida
eu tenho a cabeça feita
para a perder

Tuesday, March 21, 2006

Anita no Dia Mundial da Poesia


À atenção do Sr. D e do alfinete, que eu cá não sou antropógina.

ANITA

Branca, franzina, delicada,
tem no olhar a inocência da criança,
que em fofo leitozinho reclinada,
sorrindo sonha, e que a sonhar, descansa.

Mas quando Anita sonha, gentil fada
voa dela ao redor, com asa mansa,
e com pés de cetim sobre a almofada
não faz ruído algum - Quem é? A Esprança.

Mas quando Anita acorda e em redor
ouve só gritos, ais, prantos de dor,
queixoso pranto lhe magoa o olhar.

Cerra de novo as pálpebras mimosas.
Quer ver de novo a Esprança, o Sol, as Rosas.
- fazes bem Dona Anita, é bom sonhar!...

Cascais, Ano trágico de 1914
GOMES LEAL

Tuesday, March 14, 2006

Acho que quando for grande nunca vou conseguir encontrar o caminho para casa.

Sunday, March 12, 2006

Senhora do O

Pois mesmo que não tenha nada a ver, eu aproveito as interjeições finais do poema da Anne à Sylvia para pespegar aqui com um soneto decalcado à noite, a partir do "Sermão de Nossa Senhora do O", do Padre António Vieira em 1640 (estás a ver alfinete, eu faço discriminação positiva de gajos). A pintura, mais uma vez com uma definição que só à lupa, é de Pierre Crouzet sobre foto de Bettina Rheims.



"Faemina circundabit virum."
Jer 31:22

Sendo Ele o objecto do anelo
e o meu colo o sujeito que anelava,
em mim logrou a forma que buscava
e logo anel formou para contê-lo.

E a roda do tempo em mim se trava,
em mim se imprime e grava o eterno selo,
pois todo o meu Amado eu desejava,
estendendo minha pele para acolhê-lo;

Em mim Ele se move e tem repouso
e Ele é o varão, eu a donzela,
e Ele está em mim e eu estou n’Ele

e este é o mistério mais gozoso,
ser Ele a pedra dura que por dentro
circula e mergulha no meu centro.

Tuesday, March 07, 2006

Female Bonding #2


Morte de Sylvia by Anne Sexton

para Sylvia Plath O Sylvia, Sylvia, com uma caixa inoperante das pedras e das colheres, com duas crianças, dos dois meteoros que vagueiam frouxamente em um playroom minúsculo, com sua boca na folha, no roofbeam, no prayer dumb, (Sylvia, Sylvia onde você foi depois que você me escreveu de Devonshire sobre batatas rasing e abelhas se manter?) que você estêve perto, apenas como o fêz para se encontrar para baixo? Ladrão -- como você rastejam em, rastejamento para baixo sozinho na morte eu quis assim mal e para assim que long, a morte que nós dissemos que nós ambos outgrew, essa nós desgastamos em nossos peitos skinny, esse nós falamos de assim frequentemente cada vez que nós tragamos três martinis secos extra em Boston, a morte que falou dos analistas e das curas, a morte que falou como brides com lotes, a morte nós bebemos a, os motriz e a ação quieta? (em Boston o passeio morrendo nos táxis, sim morte outra vez, que montam para casa com nosso menino.) O Sylvia, eu recordo o drummersleepy que bateram em nossos olhos com uma história velha, como nós quisemos o deixamos vir como um sadist ou um fairy de New York para fazer seu trabalho, uma necessidade, uma janela em uma parede ou um crib, e desde essa vez esperou sob nosso coração, nosso armário, e eu v agora que nós o armazenamos acima do ano após o ano, suicides velhos e eu sei na notícia de sua morte um gosto terrível para ele, como o sal, (e mim, mim demasiado. E agora, Sylvia, você outra vez com morte outra vez, que monta para casa com nosso menino.) E eu digo somente com meus braços esticados para fora nesse lugar de pedra, o que sou sua morte mas pertencer velho, uma toupeira que caia fora de um de seus poemas? (amigo de O, quando o bad da lua, e o rei ido, e a rainha na extremidade que da sua sagacidade a mosca da barra ought cantar!) Mãe minúscula de O, você demasiado! Duquesa engraçada de O! Coisa do blonde de O! Sylvia, Sylvia,

Tradução encontrada aqui (por quem, por quê? se for uma máquina é do caneco do poema de Anne Sexton, em 17 de Fevereiro de 1963. A imagem é de uma tal Lulu Fry

Female Bonding #2

A MORTE DE SYLVIA

Sylvia, Sylvia,
com um estojo morto de pedras e colheres,

com dois filhos, dois meteoros
à solta a brincar num quarto estreito

com a tua boca contra o lençol,
contra a trave do tecto, contra a muda prece,

(Sylvia, Sylvia
para onde foste
depois da tua carta
de Devonshire
sobre plantar batatas
e criar abelhas?)

por que causa te ergueste,
e como precisamente te afundaste?

Ladra –
como pudeste esgueirar-te

acocorar-te sozinha
nessa morte que eu queria tanto e há tanto tempo,

a morte que ambas dizíamos ter vencido,
a que guardávamos nos peitos escanzelados,

de que falávamos tantas vezes de cada vez
que emborcávamos três dos mais secos martinis de Boston,

a morte que falava de analistas e de tratamentos,
a morte que falava como noivas entre tramas,

a morte a que bebíamos,
as razões e o gesto taciturno?

(Em Boston
a moribunda
corrida nos táxis,
sim outra vez a morte,
na corrida para casa
com o nosso menino.)

Ó Sylvia, recordo o tamborista sonolento
que tocava nos teus olhos com uma história antiga,

como queríamos deixá-lo vir
como um sádico ou uma fada de Nova Iorque

fazer o seu serviço,
uma necessidade, uma janela numa parede ou num berço,

e desde então ficou à espera,
debaixo do nosso coração, do louceiro,

e vejo agora que o vamos cumulando,
ano após ano, velhas suicidas

e conheço ao saber da tua morte
um terrível gosto disso, como sal,

(E eu,
eu também.
E agora, Sylvia,
tu outra vez
com a morte outra vez,
a correr para casa
com o nosso menino.)

E limito-me a dizer
estendendo os braços para esse lugar de pedra,

o que é a tua morte,
senão uma antiga pertença,

uma verruga caída
de um dos teus poemas?

(Ó amiga,
enquanto a lua é má,
e o rei partiu,
e a rainha treslouca,
que cante o cocktail espumante!)

Ó diminuta mãe,
também tu!
Ó estranha duquesa!
Ó coisa loira!

Anne Sexton, 17 de Fevereiro de 1963
Tradução às três pancadas: a dificuldade está na morte ser masculina em inglês; "o meu menino" ("my boy") é essa morte. Aceitam-se sugestões.
A lua vem a explodir em volta da nossa viagem.

Monday, March 06, 2006

Está-me a crescer uma flor no joelho.

Friday, March 03, 2006

Ela é boa de cuspir / Ela dá pra qualquer um

1. Sei e sinto profundamente que aqueles adolescentes não eram adoráveis, mas que também nunca foram adorados. Que a família os desleixou. Que o Estado os abandonou. Aprovo, exijo, que se façam inquéritos às suas instituições e ambientes de acolhimento, que se discuta longamente sobre o que tem de mudar na educação e protecção de menores de risco em Portugal e em toda a parte.

2. Mas a que Estado pertencia Gisberta? Quem era a sua família? Como foi possível ter-se ela mantido um saco de descarga do pior de nós durante tanto tempo sem reacção (e não reagiu?) sem procurar ajuda (e não procurou?), sem ter a quem recorrer (e não teve?). Auto-imolou-se ou simplesmente se deixou escorregar até ao mais fundo de já não ser humana? Quem vai abrir um inquérito sobre as condições de abandono, ostracismo e violência homofóbica ou racial ou social ou o que seja dos tantos como ela, dos que se deixam ficar de borco deitados em cima dos cartões do nosso lixo, à porta das nossas igrejas? E quem vai mudar de passeio e quem vai ser o (seu) próximo? (Lc. 10; 29 – desculpem o mau jeito, mas ou há moralidade cristã ou comem todos)

Thursday, March 02, 2006

Vetusta Alface

Três anos é obra. Refocilemos com gorgonzola.


querida Sylvia Plath ainda um dia havia de escrever
sobre ti coleccionei-te semelhei-te ou pelo menos conheci
o tipo fisguei-te logo na fotografia de jovem pin-up
provocadora álacre que (se acaso te aludiam
ao que serias na vida) com graça respondias
serei poeta e célebre não quero ser serei
como se dizer fosse já concretizá-lo como
se a promessa dada da palavra não pudesse
reconsiderar. engano.

a procura quotidiana do assombro regulado
por depressões intercalares matinais
despertadores sacudindo o sono o mal
disfarçado prazer da rotina seguido
de aperitivo servido com mordomias de mulher
maravilha fada do lar arguta companheira
e depois tardes inteiras invocando em vão as parcas
economias da poesia
e depois súbitas ganas de violência sanguínea
e depois nada paralisia.

ó a cósmica angústia que grandiloquente
substituías ao comezinho azedume
da fortuna literária dane-se Sylvia
francamente inútil sondar o poço
da promissora adolescente prematuramente
morta.
Impossível recuar Et pourtant dirás
recuamos sempre perseguimos só
os que vão atrás de nós os precursores
que do alto de seu cerúleo areópago
com sentencioso alvitre de poetas laureados
nos cilindram.

Ted
e Ted Ted Ted Ted Ted Ted Ted
o enigma que dizem as más línguas
terá depurado a arte de que serias exímia
até um dia teres deixado de ensaiar
Ted o esposo o amante o pródigo magnânimo
tirano intelectual sentimental necrófago
do afecto,

ou a fatal atracção dos animais que se semelham
quando o laço que caça é o olhar reprovador
do retrato ao espelho

de chofre sem apelo fulminante
de feroz voracidade a Lucidez
lucíssima senhora lázaro
dos passos da poesia pela via dolorosa
Sylvia paralítica da palavra-salto sobres-
salto.

repousa tu que estás eternamente
e viva eu cá na guerra de arco em riste
a poderosa arma esta
palavra-funda que regressa.

Wednesday, March 01, 2006

Ainda que mal pergunte # 2

Eduardo Pitta é, quanto mais não seja pela regularidade com que dialoga connosco, o grande responsável pelo sucesso do blog da literatura. Dispõe, com generosidade, do seu tempo e capacidade de reflexão, para partilhar connosco os seus exercícios críticos num espaço que é, pelo menos teoricamente, de livre acesso e que possibilita réplicas e tréplicas ilimitadas. Enquanto crítico, tem também o mérito de se esforçar pela transparência. Em termos de afinidades electivas, por exemplo, deixa-nos saber, por vários meios, onde se situa e os seus “inner circles”, sem se fechar aos que não são propriamente do seu âmbito, antes mostrando curiosidade para se intersectar com eles. Mais do que isso, o Eduardo Pitta tem uma intervenção cívica com espinha dorsal.
É por isso que estranho a sua última prestação no debate sobre a crítica literária. Pitta levanta a questão da capacidade de inter-relação da crítica literária com o “vasto mundo”. Sugere, nomeadamente, que a recensão e divulgação de obras ensaísticas, como O Choque das Civilizações, de Huntington, deviam ser implementadas a bem de uma reflexão sobre a presente “insânia” da violência à volta dos cartoons de Maomé. Acontece que Pitta é um agente do meio sobre que vem opinar. Dos nossos três suplementos literários mais divulgados, encontro colaborações suas pelo menos em dois. E por que é que ele não pode propor recensões das obras ensaísticas que julga tão imprescindíveis? Porque as suas competências estão delimitadas? Por quem? Afinal, quem são os decisores de como se faz crítica literária em Portugal, e por que parâmetros se regem?

P. S. Para uma desopilação cómica sobre matéria análoga, este post.

Monday, February 27, 2006

Perdidos pela Não Tradução

Quando comecei a desafiar o alfinete com a Emily Dickinson, não fazia ideia de onde iríamos dar. Olhando para o que fizemos, fico contente. Para além de abordagens talvez controversas, como textos apócrifos e não convencionalmente literários (uma receita de dois dias abreviada para quatro horas), bem como o pendor para a falácia biográfica (Emily escrevia no verso de receitas de cozinha? Então porque é que não consegui desencantar uma imagem com um desses manuscritos?), trabalhámos três das melhores maneiras para chegar a uma obra. A tentativa de compreensão e comentário, a tradução e a glosa (ou paródia ou pastiche, como lhes quiserem chamar, dando-se alvíssaras a quem destrinçar finamente estes conceitos). Os dois últimos modos relacionam-se. Já Fernando Pessoa dizia que, para aprender mais de literatura, urgia fazer uma História de Traduções conjuntamente com uma História de Plágios. É também dele a ideia de que muitos textos (“e mesmo grandes textos”) beneficiariam em ser traduzidos para a língua em que foram escritos. Lançou este argumento, claro, como ramificação da sua crença de que a arte seria mais importante do que o artista, e portanto os bons poemas só ganhariam em ter remakes consoante a evolução do gosto crítico. É uma ideia pragmática. Mas não muito exequível, visto que é difícil saber onde acaba a tradução e começa a emenda. E Fernando Pessoa defendeu, noutro lado, que era de evitar a tentação de melhorar um texto.


De qualquer forma, e embora se possa pensar que é grande privilégio de um nativo sentir numa poesia as nuances do génio de uma língua, ao considerar isto senti de repente grande pena de me estar vedada essa forma de compreensão, do transfer linguístico, na poesia da literatura portuguesa. Ocorreu-me então a ideia de colmatar essa falha, olhando para traduções estrangeiras de poemas portugueses. Pesquisando na net nas línguas que melhor domino, o francês e o inglês, o máximo que encontrei foi isto. As traduções pareceram-me excelentes. Mas é muito pouco, começa só na lírica moderna, e depende da subjectividade dos dois tradutores carolas de serviço, Richard Zenith e Alexis Levitin. Bem hajam. São patrocinados pelo IPLB. Ainda bem. Contudo, é caso para nos interrogarmos sobre tudo o resto que não se anda a fazer para defender a nossa literatura. Arrisco mesmo dizer, para defender a nossa língua. É que Alexis Levitin, nessa página, inclui um interessante depoimento sobre o seu trabalho de tradução de Eugénio de Andrade, e dos anos que passou para modular o idioma dos saxões com alguma das sonoridades do português e, suponho agora eu, das suas particularidades sintácticas, da inflexão dos seus idiomas, e dos imaginários e formações ideológicas que obviamente suscita o pensar em qualquer língua. Conseguirmos contaminar com isso outras línguas parece-me uma forma criativa e inteligente de fazermos viver a nossa língua. Mestiçar é uma forma de sobreviver pela comunhão. Daí o sucesso actual do inglês. Mas essa lição, a nós, parece que só serviu para adoçar más consciências esclavagistas. Linguisticamente, mantemos o estúpido regozijo na facilidade com que aprendemos as línguas dos outros, e na dificuldade com que a nossa se transpõe (essa intraduzível “saudade”, de “soledade”, de orgulhosamente sós).

P. S.: pequena foto em gratidão à gentileza de estranhos para com a lusofonia, depois da agradável experiência de ter visto, este Verão em Nápoles, várias obras portuguesas nos escaparates das livrarias.

Friday, February 24, 2006

Female Bonding #1












MULHERES

As minhas três irmãs estão sentadas
sobre rochas de obsidiana preta.
Pela primeira vez, a esta luz, consigo ver quem são.

A minha primeira irmã está a coser o fato para a procissão.
Vai vestida de Senhora Transparente
e todos os seus nervos estarão à vista.

A minha segunda irmã também está a coser
sobre a ferida do peito, que nunca cicatrizou completamente.
Espera, enfim, aliviar este aperto no coração.

A minha terceira irmã está a contemplar
uma crosta vermelho-escura que a ocidente se estende ao longe sobre o mar.
Tem as meias rotas mas é formosa.

Adrienne Rich,
Leaflets, 1969, tradução roubada aqui, onde também se pode ler o original.



ENDECHA DAS TRÊS IRMÃS

As três irmãs conversavam em binário lentíssimo.
A mais nova disse: tenho um abafamento aqui,
e pôs a mão no peito.
A do meio disse: sei fazer umas rosquinhas.
A mais velha disse: faço quarenta anos, já.
A mais nova tem a moda de ir chorar no quintal.
A do meio está grávida.
A mais cruel se enterneceu por plantas.
Nosso pai morreu, diz a primeira,
nossa mãe morreu, diz a segunda,
somos três orfãs, diz a trceira.
Vou recolher a roupa no quintal, fala a primeira.
Será que choeve? fala a segunda.
Já viram minhas sempre-vivas? falou a terceira,
a de coração duro e soluçou.
Quando a chuva caiu ninguém ouviu os três choros, dentro da casa fechada.

Adélia Prado, Bagagem, 1975

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