Thursday, May 30, 2019

Maria de Lurdes Pintasilgo a Maria Velho da Costa

disse a tal frase numa carta de 8 de setembro de 1979. Vale a pena enquadrar:


[na cabeça do sonho: sobrepovoação de aves raras]

Em Vendas Novas, o coeficiente da felicidade dependia da qualidade e número de avestruzes. Devido ao clima, os ovos já saíam galados. Os pequenos pintos pardos que eram postos a espreitar da casca seriam os novos donos da terra. Desta vez, auditores e auditados revezavam-se de maneiras confusas. Queria-se comer, mas não se comparava ao que era dantes.

Sunday, May 26, 2019

Casa de Manuel Lopes

pórtico

Com seu quê de kitsch e delicado
de ossos, o Lopinhos queria ser padre.
Pregava de pequenino com avental
comovendo-se com ladainhas, rosários
e depois foi tempo da poesia, que lia
como mezinha, tónico azedo de interiores.

Logo por ironia na lancha Fé em Deus
havia de lixar a anca, incrível desgraceira:
«ó meu amor antes fosses ceguinha.»

corredor

«Era ao sair da infância, eu não sabia»
seguir o risco ao meio entre uma porta
e outra a vida, repetir os passos à luz
apagada, aprender a domar a constância
de sofrer e a falta de opção de crescer;

se é desconjunta a formosura apascentada
na cabeça, recusa clemência a curta
estatura, sobe a voz a encorpar a altura.
Vem por acréscimo a conquista da casa
quando se domina o vernáculo do lugar

ar do tempo: manual para se estar 
a cagar, luta de classes, pornografia q. b.
e outras prospeções e sortilégios
que «só a mim afetam e confrangem».
Corpo indiscorrível, labirinto de alçapões.

                                                                          fachada

O que nos encolhem as birras dos maiores:
tinha vinte e cinco anos no sessenta e oito —
o mesmo número da porta onde «no patamar
as esporas do pai» e a janela cosida
por um cristo redondo. Diria:
«Estou sentado virado para a parede desta casa»
diria: «baixo, mais baixo ainda, aguardar

mais aguardar nada», a prece
uma caução para vedar o pânico —
um tapume a rechaçar a avenida
e tantos indomináveis obstáculos
para o norte, o mar, pernambuco, as formas
opulentas do amor extremo, o inexplicável
volte-face do atropelo, a carroça

da tragédia, o destino órfão enfermo.
Entalar pois a porta ao mundo, povoar
a casa de prolongamento e fundo
como «centopeia amputada»
contra o corpo couraça de chagas
infinitas: a casa ermida peregrina
encenada à altura de uma vida.

[as citações são retiradas de sublinhados de livros alheios e escritos autógrafos nesta casa:]




[na cabeça do sonho - em véspera eleitoral]

Desta vez eu estava no júri. A candidata era minha amiga. A tese era fraca e fora entregue à revelia da orientadora. Eu devia ter avisado ambas. Metia lamechices na primeira pessoa sobre a vida sentimental dos tradutores. A primeira arguente era uma víbora e queria chamar a polícia do estilo. O segundo era daqueles que só mordem os mais pequenos. Depois as provas já tinham acabado, eu não sabia que posição tomara e ninguém me dizia o resultado. A candidata deixara um papel para ser assinado por quem se disponibilizasse para ser indicado como sua referência. As palavras não chegam para a angústia. A caligrafia mareava-me. Sei bem por entre o quê vacilava: a justiça do mérito absoluto e o rácio entre o potencial de dedicação e sufoco da candidata, enquanto ignorava quer o seu grau quer o efetivo bullying que podia ter sofrido pelos eruditos anteriores. Combinava-se também um jantar com Viriato Soromenho Marques, o que era simpático, mas havia um certo ambiente de golpe palaciano que me suscitava, num misto de fascínio e desistência, a morbidez.

Podia haver uma epígrafe, como aquela frase de Maria de Lurdes Pintasilgo que diz mais ou menos que a corrupção começa quando cedemos ao enfrentamento do inevitável.

Thursday, May 23, 2019

[na cabeça do sonho: falha]

Alguém me passava uma imagem inédita, lapidar naturalmente, da poeta. O castigo é que não me lembro a que se aplicava. O que seria "a térmita branca do silêncio"? A vaidade? a filosofia? o argumento? Tanta coisa quase encaixa, mas soa a falácia. A facilidade? a precipitação?

[lembrei-me entretanto da chave oracular: "o talento é a térmita branca do silêncio"]

Tuesday, May 21, 2019

[na cabeça do sonho: dos grupos, creio]

         Estavas a escrever um tratado do Espavento. O espavento derivava dum sentimento chamado Pávia, segundo julgavas, uma espécie de raiva socializada. Acampava-se, às vezes, viviam vários numa mesma casa, tirados à sorte. Um deles era o velho cortês e folgazão que geria o bar das assembleias populares e não se importava que estivesses sempre a perder o recibo. Infiltrava, aliás, no teu tabuleiro uma tapioca que nem tinhas pago. Gostava que lhe catrapiscasses o filho, o único dos três que vinha visitá-lo, e que fazia BD, linha clara e atoleimada, em 3 D. 
          Aquilo acabava numa viagem de campo, tu com muita fome, os teus mais próximos exigindo que partilhasses a alheira arrefecida, as murchas batatas fritas, a tapioca que já não havia e tinham substituído por um papo de anjo com cobertura de sucedâneo de chocolate, e eu, que me esquecera do saco-cama, tripartida entre o estômago vazio, o hipotético enrijamento do frio, a resistência a fazer todos voltar atrás.

Sunday, May 19, 2019

Sophia de Mello Breyner Andresen

Quanto pesou, senhora, a grande lista
no seu nome? d'outra água, o ph
tornando claro que não vem de cá;
o duplo l, cedendo maneirista

mas bom tom. Nem falta aliteração
à letra de alheios mapas: arcano
da Grécia, drible da Dinamarca
com lendas de cavar o coração.

Tudo alentava, mas só o Elísio
lhe dava contra-parte a suas fomes.
Muito disciplinava, mas o vício

de mar, os cigarros, não, ah! ímpetos
de sol e de peneiras, seus cognomes 
contra-dicção de lindos versos limpos
.

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