Sunday, May 31, 2020

a ver se desta acabo teu prazer

escrevo-o porque é o mais difícil
de fazer sem ti, que foste corpo
bóia às minhas mãos, bordão torto
mas para vir à terra o mais fiel

ferro. E se eu na pele nem soube
do mal que me avisaram que me fazes
e já sou mestra em largar-te quase
tanto como a Plath a gritar lobo

até morrer de facto, eis o tributo
ao que passámos: rumores de noites,
copos, cafés, suspensões de céus

e sol manchado após o mar ou coito
e o pasmo sobretudo libertado
do vazio — que triste, cigarro, adeus.

Monday, May 18, 2020

milho (de Jan Wagner)

isto é um campo, nele te perdes
a brincar, com as sombras como hastes,
e as jardas ou os hectares
de campo, de vento, de vasto

da casa te apartam. é revolta
a folhagem, como se baralhássemos
cartas. logo, entre massas de astros
uma nova imagem: lebre à solta.

tu dormes. enrolado como animal.
isto é uma manhã. te alcança
o sol, com a tua sede rilhando

o crânio. sobre ti o colossal
vulto de onda que balança
ri, dentes de ouro arreganhando.


[Primeira tradução, praticamente sem assistência, do alemão - ok, há uma tradução inglesa que...  - e de um contemporâneo do camandro. Gosto muito deste poema porque ele é espantosamente igual à história repetida vezes sem conta, pelo meu pai, da sua primeira memória, aos quatro anos, entre a casa e o pai dele (meu avô), levando-lhe o talego aonde lavrava - substituindo, diz ele, "a folhagem do milho pela dos juncos e atabuas".]

[na cabeça do sonho: viajar da maneira mais difícil]

Estacionava num mall duma universidade porque era só para ir à farmácia, mas saía pela porta errada, demorava a contornar, quando descobria o carro já lá não estava. O rebocador só o devolveria depois do bilhete de regresso para Portugal. Era preciso suborná-lo, bem como ao polícia da multa. O carro vinha pintalgado de vermelho e praticamente imprestável. Passava a viajar com um cabide com rodas. Mas não eram sítios muito interessantes que visitava. Ia de mercearia em mercearia e recebia sobras de graça pois só tinha uma nota muito alta e ninguém tinha troco para ela. Era árduo voltar para casa, o cabide às vezes desabava no meio da estrada, dobrava-se sobre si como triângulo de automóvel, o casaco da filha caía ao chão, os pães com chouriço ficavam esmagados no saco de papel ao fundo de onde estava, criava verdadeiros engarrafamentos de trânsito enquanto percorria as estradas com aquela espécie de algália.

Thursday, May 14, 2020

Rima abc

Está vazia a cadeira onde folgava a fivela
caso – como se não fosse consigo –
ela lhe proporcionasse uma mamada.

Para que não voltasse por noite de trovoada
ela deu a um sem-abrigo
o guarda-chuva que deixou pendurado na janela.

Desconsidero, eu sei, mordo o amor como cadela.
Meu Deus livra-me do perigo
de para sempre ser uma poeta ressabiada.

Wednesday, May 13, 2020

o que se perde na tradução

O termo publicista caiu em desuso; hoje temos influencer.

Monday, May 11, 2020

Idealismo Radical

Abafa-se o envelhecimento, restolho ao fundo
no presente, há matéria que finalmente aguça
a curiosidade, até o medo é fresco de augúrios
e mistérios, até o silêncio ferve com nervoso
miudinho como nas manhãs de acontecimento
como numa viagem ou numa auditoria importante —
a mente aumenta com hélio de invenção a ponto
de se empoleirar bem acima e convencer o eu
de que não só o rege como é grande o seu poder
para modelar o entorno e os teus suores à noite
são uma lavoura celeste, empregando demónios
úteis para um mundo mais pobre e genuíno
e praticamente indolor, a que bastem –  diz ingénua
mente — iguais doses de catástrofe e solipsismo.

Tuesday, May 05, 2020

mesmo a ver

"Dezenas de bocas a respirar dentro do autocarro, um perfume enjoativo, cheiro a cabelo. Duas velhas trocam mansas impressões sobre os dossiers correntes da vida doméstica; o bem e o mal, o trabalho honesto e difícil, maridos e filhas, doenças e dívidas, as dores nos ossos.
Já próximo da Praça, uma delas volta-se para mim e diz: 'O amor, meu senhor, é uma cidade permanentemente a meia-haste. Escreva isso no seu caderno'"

Rui Manuel Amaral, Cadernos de Bernfried Järvi




Saturday, May 02, 2020

pechisbeque

outra liga, a poesia? corre à boca pequena
que este quê adorável de colocar a língua
é uma obscena imitação do mundo indecifrável

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