Monday, August 23, 2021

Teoria do Apego

                            para Rita von Hunty

 

Nós que colocamos o amor, peso

sobre liquidez, flutuante incêndio

ou ilha-archote entre flanelas

inflamáveis, à mercê do amado—

seremos todas nós pessoas filhas

pelos pais destratadas? Nós

 

que fazemos planos de inundação

do outro, afogamento próprio, não 

pregamos olho, vigias do alheio 

ansiosas, arquejantes de afã

e desvelo, de insano receio

de abandono, fomos abusadas

 

na infância só que o ignorávamos?

Ou eram nossos pais iludidos

e mentíamos à fotografia

a pedido: "sorri, beleza" e cada

um ia à sua vida? Ou só há

infância antes de se articular

 

a tristeza? Ou se calhar estávamos

ali irradiando no muro estreito

sobre o tanque grande circular que

fazia as vezes de piscina e, como

as pedras, víamos tremelicar

na água a nossa outra cara, séria?

Saturday, August 14, 2021

Taís de Atenas interpela Dante Alighieri

Que necessidade tinhas de me pintares

assim escanchada de tanto ser

fodida? puttana em cabelo, sem aprumo

 

scapigliata, esgadanhando com unhas

sarrentas, ensebadas, grafitteuse

de merda na própria pele?

 

Sondadas as fontes, desde Terêncio

a Cícero a ti, pueril sequaz de Virgílio

– em concreto: O que é que eu fiz?

            

Pois bem, ninguém sabe ao certo.

Fui meretriz, e daí? Disse a uns fulanos

que me tinham levado ao céu

 

quando quem fazia o foguetório

era eu? Vi-os encolhidos e inchei-os.

É crime? Deitei umas achas

 

nas brasas de uma cidade estrangeira?

Umas quantas vezes, vim-me

outras resignei-me. Mas tu,

 

que poupaste as outras, uma vendida

outra oferecida e uma terceira louca

bruxa e filicida, achincalhas-me a mim

 

romeiro, por ser rameira e só

fazer pela vida? Mas tu

e esse teu amigo épico

 

ainda têm o nervo de dizerem

que estão saciados, que enfim da vista

me rechaçam? Não se incomodem

 

eu sigo: viro-me, grito-vos: lérias

e tréguas. Por quanto mérito

hão buscado a olhos meus e quanta

 

praga desdenhosa, digo-vos: além

do espelho, a léguas do inferno, vida nova

haja, menos sarnenta, Anzi maravigliose!


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