Friday, January 25, 2019

Mallarmé Amontillado

Como a Si próprio, enfim, a eternidade o torna,
O poeta convoca com um gládio em riste
Seu século, atónito por não ter previsto
Que nessa estranha voz triunfava a morte!

Eles, como a hidra que, torcida, ouviu
O anjo apurando o sentido de gentias
Palavras, gritaram ser aquilo heresia,
Peçonha vil bebida a desonroso rio.

Ó desgosto, do sol e da nuvem adversos!
Se não cinzela nossa ideia um relevo
Que o túmulo de Poe eleve com fulgor,

Bloco à terra descido por azar obscuro,
Ao menos o granito se erga com rigor
Contra esses fumos da Blasfémia no futuro.

[No primeiro verso, Mallarmé, que se estará a referir àquilo que não só Baudelaire como outros incluindo Amadée Pichot, Rollinat e ele próprio fizeram por Edgar Poe (o maior caso de ménage amorosa na história da literatura),  condensa aquilo que George Steiner designa como restituição. Esta é para ele a última e rara fase da tradução. Para a definir, colhe inspiração no que Walter Benjamin (1923/1968) designou como "sobre-vida" (Überleben em alemão, não tão distante em si da palavra para "traduzir"; Übersetzen, colocar por cima). Steiner fala em encontrar no texto "algo novo que já lá estava" (1998: p. 102), o que implica, parece, pelo menos uma semi-crença romântica na possibilidade de se irem encontrando os sentidos do puzzle do grande poema, ainda que o autor de Depois de Babel se queira salvaguardar contra a leitura mística da sua proposta. 


Volto, por isso, à intuição de que os tradutores são os pragmáticos do romantismo. E estou em crer, camaradas, que o ensino da tradução tem por conseguinte a ganhar com trazer o espírito à equação, bem como um discurso de iluminação (mas não de despotismo iluminado, porque precisamente virando de avesso a autoridade de um original). Ou não é a metáfora uma coisa do espírito ou não é o entusiasmo um aliado motivacional da experiência literária? 


Ter entusiasmo encontra uma das suas manifestações em estar entesoado/a, partindo da esperança que venham ambos de enthous, em possessão inspirada, um endeusamento. Na aparente heresia, vale a pena ir buscar a Benjamin outro termo, o de "iluminação profana"(1929)  para descrever a experiência de estranhamento pela qual, em certos estados oníricos, reparamos nos objetos esquecidos (tornamos a parar, neles tropeçando) da realidade quotidiana. Daí se justifica que a tradução deva fazer ao poema o que este faz à experiência ou ao sonho. É o que leio "No Túmulo de Edgar Poe" de Mallarmé: a tradução como o anjo que apura o sentido de gentias palavras. O francês diz "Donner un sens plus pur aux mots de la tribu" mas "dar um sentido mais puro às palavras da tribo" não rima no português do soneto. "Gentias" vem de Camões, que - defende quem o traduziu (Landeg White, refletindo sobre os seus Lusiads) - foi o primeiro a chamar "gente" àqueles que os seus contemporâneos chamavam nativos, selvagens e bárbaros.*]


*assim traduziu White "a estrangeira gente e estranha usança" por "these new ways of being human".




Monday, January 21, 2019

A traição do eco

Tens pena de não teres dirigido
(ias sonhando, bateste contra o muro
onde se lia com brilhinhos de ouro)
o primeiro eco nunca repetido

(foi ontem, ao fundo, o espelho elevado
do rio à rua dos lagares). Veio
donde? Mundo “templo de muros cheios
de emblemas, imagens e ditados

da deidade” – Emerson, e o crivo
peneirado em Baudelaire – “La Nature…
ah, floresta de andaimes, graffiti vivo.

Fazer o quê? esperar na tradução.
Esquece o muro, rouba o rio e o ouro
(à rua)
deixa em seu lugar a imitação.

___________________________________

[Não sei se vêm daí, mas compreendi a justiça dos nomes da rua dos lagares e do largo da graça de quem desce, e para onde, ao meio-dia do domingo de ontem, a dita rua fazia subir o rio como um espelho com uma cortina lavada pela luz do sol, tudo transparente, lívido puro e líquido. Não fui só eu (se acaso me julgam dada a halos epifânicos, direi – até vinha da missa), que achei um milagre, também um par de turistas ao frio ali ficou especado, alongando uma pronúncia estrangeira na exclamação de Meu Deussh!, assolapados de beleza, os físicos imobilizados por essa estupefação espiritual que se diz awe em inglês, e em francês, por uma vez mais lhano, bouche bée.  Penso que me aparecem poemas por duas razões: para alterar a vida, como chicote elétrico de alergia às coisas, ao nosso nojo e dos outros, por uma espécie de repulsa da inanidade, da malícia e da fealdade, ou então para passar a mais gente o que precisamente vai passar e a que queremos voltar, queremos gravar para mostrar e mitigar a maioria do quotidiano que é a prisão e a invalidez. Foi isso que quis fazer com “foi ontem ao fundo o espelho elevado / do rio à rua dos lagares”, que provavelmente ficaria melhor sem vírgulas, mas já era outra coisa, ora, não tem a pontuação ocidental que distanciar sempre a ideia da escrita, pode fazer respirar o relato vivido. Ou seria então a outra pulsão do poema, querer alternar por dentro a rebentação da luz, embebendo-se até à vertigem de se afogar dela?


Como na realidade, o sonho. Sonhei realmente (não foi ontem, há muito tempo) que via um muro onde estava escrito um poema, e eu lia-o mesmo, era sólido e magnífico, não estava de carro, estava a pé numa espécie de baldio aquintalado (o “dirigido” e a impressão de choque são o acidente a entrar no poema, os dias últimos em que estampei um automóvel e perdi a carteira) e sabia que era um imperativo impossível levar o texto do sonho à vida. Iria acordar e querer ficar no sonho até me (o) incorporar. Juro até que sonhei tudo isso antes de ler o ensaio “The Poet” de Emerson, onde Baudelaire foi enxertar os versos de Correspondances (também Melville lá terá bebido para Bartleby, “os muros circundantes, de espantosa espessura... o carácter egípcio da maçonaria pesando soturnamente, ... e um só tufo de erva a crescer por baixo dos pés... por estranha magia, pelas brechas, forragem esparsa caída quem sabe de pássaros, por onde parecia brotar o coração das pirâmides eternas”). Não juro que no sonho as letras se douravam, aí terá sido a tentativa da transcrição a lembrar-me de Quental: “Abrem-se as portas d’ouro, com fragor... / Mas dentro encontro só, cheio de dor, / Silêncio e escuridão – e nada mais!”  Todos os homens a quererem apanhar o poema. O que este faz à experiência ou ao sonho deve fazê-lo a tradução ao poema. A mesma coisa, com o acidente, se for para mudar.]

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