Wednesday, January 29, 2020

Matar o Pai

                                            ao Manuel Resende

Progredia a brancura, e nós uma corrente:
era um socalco ao lado sem cume a vertente
do outro lado um abismo que havia e nós

não víamos pois era tudo branco a neve
iludia. Piso macio, desfeito, breve
a nossos pés a boca de um perigo. Nós

seguíamos na branca duna que cedia
calcada pelos pés, e aos poucos se tingia
permanecendo embora muito branca. Nós

não éramos bons nem maus, tão-só sabíamos
que doía perder-se alguém. Retrocedíamos
quando um na neve se sumia. Aflitos nós

cavávamos até a pá achar um corpo,
acalentávamos com as mãos o sangue morto
e à vida ele tornava invariável, nós

tínhamos fé; bastava não negar volver
quando um mais débil se deitava a morrer;
bastava não acreditar, pois para nós

a morte o seu rigor tirava e a brancura
se aluía, desde que, sem pesar da dura
marcha já transposta, voltássemos lá nós

a buscá-lo. Tal foi a abnegação feroz
que tão longe nos trouxe. Donde, doutor, sei
que sabe, aqui chegados, por que o não matei.


Wednesday, January 22, 2020

Circundando o cabo prodigioso onde



se cingiu a terra se disputaram línguas
se dividiram as peles se circunscreveram
reinos e rivais se capturaram pretos
se levaram presos os que mais imbicaram
sem ninguém os convocar foram contados —
o que fizeram não foi registado.

Além dos rumores de desleixo de boca fraterna
e fraca, guardaram-nos fechados por anos
numa instalação rodeada de água 
onde lhes retirariam o sono com baldes
ou deixavam que sonhassem com os filhos
sempre pequenos, depois saíram um dia e já não eram.
Saíram com os filhos grandes, ocupando o lugar
que nunca tinham pensado, contando-as a elas, chefias
anteriores, inundando-lhes o sono com uma tarja:
verdade e reconciliação, o assédio para o perdão
destapando horrores.

Quando quase toda a gente é crente, dez fervorosos
por um ímpio, ocorre agora no comboio regional de que se diz
mal, destroço público e fim literal de linha —
apraz cristãmente a indulgência ao selvagem
se até papoilas brotam dos carris
nos pés dum continente onde sabe aliás a primavera
numa antípoda gémea do litoral português onde
os barcos arrotearam os impérios brancos
até hoje se enviesa a coluna dos autóctones.

Dez traves por um argueiro e quase
toda a gente sai dos apeadeiros segundo os mais próximos atalhos:
cruzando a linha ou colados a ela, quase toda a gente
mente cega segue em frente evitando as tabelas apesar de irrisória
a tarifa da comuta, talvez testem a fé ou ainda contornem a tortura
despedindo as roupas, porções pessoais desirmanadas

dobrada a ponta, onde se travam
agora os pretos embaraçados de indiluível convívio aqui
no vagão onde o único espécime claro não contém a pena

os estofos têm repelões que são as peles arrancadas.
As janelas têm fracturas ovais e além delas vêem-se arames
igualmente rompidos em buracos do tamanho duma bola
por eles viçam ervas daninhas, repousam no vale
as vinhas dos Afrikaans, gente a um tempo sisuda
e condoída, vista de fora. Muralhas, maravilhas, o dobre
da história que mal se desenrola não ensina.

Metrorail, Cidade do Cabo – Stellenbosch, 9 de setembro, 2019

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