Thursday, July 25, 2019

Paulo Quintela II



Maria Irene Ramalho homenageia-o assim: “Temos a poesia da prosa portuguesa reinventada n’Os Cadernos de Malte Laurids Brigge” (2008: 39-40). Mas foram sobretudo poetas, os que da literatura portuguesa pós-1945 aderiram ao Rilke que Paulo Quintela traduziu, de tal forma que se poderá dizer que poéticas tão diferentes como as de Vitorino Nemésio, Miguel Torga e Herberto Helder terão sobretudo em comum esse ouvido das traduções de Quintela. Posto que Rilke, constatou David Mourão-Ferreira (depois também seu tradutor), se tivesse feito sobretudo como poeta a procurar um ver de novo, o que o levou a Rodin como à viagens (ver 1973: 21).[1]

Acontece que as traduções de Quintela desarmaram inauditamente a própria língua portuguesa “no rigor a fogo / das palavras exatas e sofridas”, para usar uns versos sobre Hölderlin dedicados por Nemésio ao amigo Quintela (2007: 483). Possivelmente, seria preciso alguém que, como Quintela, se pacientasse num doutoramento (concluído em 1947) sobre A Vida e a Poesia de Hölderlin para colocar tanto afinco no desencastramento de uma língua. Mas foi Rilke a primeira paixão daquele homem  que, do seu dificultoso berço em Bragança, teimou no ingresso na Faculdade de Letras de Coimbra que lhe havia de abrir os cordões de uma bolsa em Berlim, de onde regressaria em 1933 com uma mulher e uma ameaça (a ascensão do nazismo) para a breve trecho se lançar nas suas primeiras “tentativas baldadas” de “adaptações” do polimorfo Rilke (1938: 215). Notamos-lhe aí a paixão, como a humildade, que o levaria ao maior contágio do estrangeiro na literatura portuguesa pós-guerra: “Eu suponho que o poder poético de Rilke é tamanho que supera mesmo as deficiências naturais (naturais minhas, entenda-se!) e inevitáveis (porque é impossível transpor para português estados poéticos que foram vividos em alemão)” (idem). Seria impossível, mas Quintela tentou-o, e daí, do seu íntimo desejo, “mal dito”, de superar as suas “naturais” tendências, o extravasamento do que até aí se fazia, a naturalização da língua.

Quintela usou traduzir ad contrario, não imaginando-se o poeta a escrever como se tivesse sido português, mas antes aventurando-se a pensar-se que a importação da língua estrangeira já faz meio poema. Porque desaloja o hábito da língua. Veja-se como ele lidou com “Herbsttag” e trabalhou uma distinção supostamente inexistente no ramo anglo-germânico, entre “ser e estar”, a partir daquela palavra tão recorrente em Rilke, bleiben (um “permanecer” que indica, provavelmente, um de-morar), para inverter a oposição costumeira:  Quem agora está só, longo tempo o será” (Wir jetzt allein ist, wird es lange bleiben). Na íntegra, foi assim que Quintela nos deu a ler “Herbsttag”:

Dia de Outono
Senhor: é tempo. O Verão foi muito longo.
Lança a tua sombra sobre os relógios de sol
e solta os ventos sobre as campinas.

Manda que os últimos frutos se arredondem;
dá-lhes inda mais dois dias de calor,
leva-os à perfeição e faze entrar
a última doçura no vinho pesado.
Quem agora não tem casa, já não vai construí-la.

Quem agora está só, longo tempo o será.
Fará vigílias, e lerá, escreverá longas cartas
e vagueará, de cá para lá, nas alamedas,
agitado, quando o vento arrasta as folhas.           (Rilke / Quintela 1938: 222-223)

O desencontro esperado (mais do que vivido) para a velhice do homem, como para o tempo em queda (o Outono) está lá. Quintela escreveu isto perto dos 30 (tinha 31 pela data que inscreve na carta a Nemésio), próximo em idade de Rilke quando lhe botou a pena, e suspeita-se que para a sua vida a previsão do desamparo fosse um presságio constante (ver Aguiar 2005). Caprichou na aliteração das folhas revolteantes (com a alternância entre [v] e [l], e ainda os [ʃ] e os  [ʀ]) e acrescentou-lhe uma opção – um uso de futuro (será, fará, escreverá, vagueará), que talvez não pareça fruto do original (construído perifrasticamente, com modal, wird + infinitivo, como mais habitualmente o faz o português, “vai permanecer”, “vai escrever”), e no entanto arranha, como arranha vento, e arranha, wird.

Quintela chama trágica à atividade do tradutor, fica insatisfeito com o que faz – a única alteração que ele introduz a “Dia de Outono”, quando o publica em livro em 1943, não deixa de ser sintomática de deslocação – dele, e de Rilke. Onde estava gib ihnen noch zwei südlichere Tage, ele primeiro traduziu por “dá-lhes inda mais dois dias de calor”. Isso, porém, seria banal e doméstico – é a experiência do nosso verão, que o outono vem substituir. Contudo, no vivido em alemão essa era uma experiência escassa, vinda do sul, isto é, do alheio. Quintela fica desassossegado por transportar o alheio para o doméstico, e depois lá encontra a palavra estranha, “meridionais” (que entra no labirinto das confluências e divergências literárias, remontando, penso eu, à oposição de Madame de Stael, entre os povos du Midi e os povos du Nord); substitui assim: “dá-lhes inda um par de dias meridionais” (Quintela 1998, III: 67).



[1] O contágio das imagens de Rilke foi no Ocidente mais ou menos universal mesmo que assíncrono; por cá, terá até levado ao exagero de alguns que, despencados do surrealismo, se refugiaram no “angelismo cego” (Barrento in Hatherly 1999: 12) e que Jorge de Sena apodou de “Rilkinhos” numa invetiva satírica de 1961 (cit. in Saraiva 1984:  22). Eduardo Lourenço também satirizou: “"Como num filme de Hitchcock invadido de legiões de pássaros apocalípticos, coortes de anjos balizam o céu (ou o purgatório) da poesia portuguesa dos últimos vinte anos" (1974: 149). Para uma resenha mais sóbria sobre a questão, ver Horster 1996 e Lage 2010.



Monday, July 22, 2019

Outono, Papoilas e Coroas

Comecei aqui. Interessavam-me textos sobre envelhecer e o passar do tempo. Precisando duma língua nova para a meia idade, pus-me a aprender alemão. É também um desafio. Deste poema disse Robert Bly: ““I’ve tried for ten years to get the last three lines of ‘October Day’ right, with their lonely sound of blowing leaves and their pride in solitude, but I can’t do it. So the reader shouldn’t believe he has the power here of the poems in German” (Rilke/Bly 1981: 68) E, se muita da poesia de Rilke usa a “maravilha especular” da língua alemã sobre que antes escrevi, há ali um desencontro de ecos, eu tentei.

Comecei pelo “Herbsttag” pois este antecipava o que realmente ainda não sei, os anos de envelhecimento prenunciados por ter vivido já metade da vida. Rilke muito menos o sabia, ele tinha 27 anos quando o escreveu. Conhecera Lou Andréas-Salomé (quinze anos mais velha, que amou), casara e separara-se de uma escultora, estava no início do encontro com Rodin. O poema fala do tempo, e posta a vida, foi o ter lido que o poema “Corona” de Celan (o tal das papoilas) o glosava (ver Felstiner 2001: 53-51), que acabei por desembocar em Rilke e o escolher para início da minha expedição alemã. Celan seria muito atrevimento. É possível que a antologia Sete Rosas Mais Tarde, de João Barrento e Yvette Centeno, tenha produzido em mim, como noutros contemporâneos de juventude, um desabar de estratos de língua e articulação de imagens, bem semelhante ao anteriormente vivido pelos leitores portugueses do Rilke de Paulo Quintela.

Quando escreve “Corona” Celan tem também 27 anos, é 1947, perdeu os pais na treva do Holocausto, fugiu ele próprio de um campo de exterminação, está condenado a escrever na língua dos seus carrascos. Vindo de Bucareste, em trânsito para Paris, conhece em Viena Ingeborg Bachmann, filha de nazi, com um lastro de despedaçamento nos seus próprios poemas. Ele enche-lhe o quarto de papoilas, amam-se, são grandemente incompatíveis mas têm uma vida artística à frente, e aquele poema “Corona” quer muito crer que da “pedra” brotará a “flor”, que o outono afinal poderá mover o coração, que será tempo de se saber (que nos afrontaram e humilharam e mataram e que agora acabámos de nos amar), sobretudo quer dar hipótese à vida. Em Sete Rosas Mais Tarde, a tradução deste poema por acaso é problemática, mas para mim foi fértil a sua tresleitura da primeira vez que Celan me apareceu, eu tinha 19. “Corona” coube, segundo indicação do índice da edição da Cotovia, a Yvete Centeno, que provavelmente se enganou ao traduzir zum Geschlecht der Geliebten, por “ao sexo dos amantes” e não “ao sexo da amada” (como em todas as outras versões que conheço). Gramaticalmente, aquele genitivo também pode ser plural, e a opção de Centeno, mais estranha, reforça uma pungência de distanciamento e empenho do sujeito poético (um olhar que observa de outro espaço, através de vidro, mas tem de descer ao belo que há no fundo e no escuro),

O outono come da minha mão a sua folha: somos amigos.
Tiramos às nozes a casca do tempo e ensinamo-lo a andar:
o tempo regressa de novo à casca.

No espelho é domingo,
no sonho dorme-se,
a boca fala verdade.

O meu olhar desce até ao sexo dos amantes:
olhamo-nos,
dizemos algo de escuro,
amamo-nos como papoila e memória,
dormimos como vinho nas conchas,
ou o mar no brilho-sangue da lua.

Ficamos abraçados à janela, olham para nós da rua:
é tempo que se saiba!
É tempo que a pedra se decida a florir,
que ao desassossego palpite um coração.
É tempo que seja tempo.

É tempo.                    (Rilke / Barrento e Centeno 1993: 13)

Estamos a falar de Celan, glosando o tema do tempo em Rilke, e isto interessa-me, na medida em que me interessam poetas, como tradutores, transferindo para outros uma reflexão sobre o decurso temporal. E que isto acompanhe o tempo e idade transcorridos no pensamento de ser ainda possível a poesia. Creio que está aí um possível entendimento do título, “Corona”, e foi lendo Paulo Quintela que me ocorreu a intertextualidade com a poética rilkeana ser ainda mais densa e agónica. Quintela, da primeira vez que mostra Rilke aos portugueses – estamos em janeiro de 1938 num país onde a guerra passará ao lado – é por via duma carta, que dirige a um amigo (V. Nemésio) e connosco compartilha; ou, pelo menos, é o efeito gerado pelo dispositivo com que nas páginas da Revista de Portugal (vol. 1, nº2) se vai conduzindo o leitor pela mão ao longo de umas vitrines de poemas de Rike em português. O germanista tradutor apresenta-nos dois poemas do ciclo Mutter como prova da “saudade da origem, o calor escuro do ventre materno” (Rilke/Quintela 1938: 216), para a seguir imaginar o poeta como sujeito da “pressão surda” (217) da sua coroa imaginária (o terceiro livro de Rilke intitula-se Traumgekrönt, “coroado de sonho”):
                  Talvez tenha morrido há muito já o brilho das pedras,
                  talvez mo tenha roubado o meu hóspede, a tristeza,
                  talvez as não houvesse mesmo na coroa
                  que recebi                    (Rilke / Quintela 1938: 218; tradução de I, 263 de Früe Gedichte)

Em “Corona”, Celan parece apostado em desmentir tudo isto – ou em restituir? (repetindo o anterior, rasgando e resgatando onde falhou).

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