Podes num dia com certeza
introduzir-te com frontal
pelos poços da alegria
ou pular da corda da tristeza
mas de cada vez a apneia
é mais breve
e a superfície escasseia
nestas zonas de conflito
ao todo a vertigem leva
quase menos do que o título
Podes num dia com certeza
introduzir-te com frontal
pelos poços da alegria
ou pular da corda da tristeza
mas de cada vez a apneia
é mais breve
e a superfície escasseia
nestas zonas de conflito
ao todo a vertigem leva
quase menos do que o título
Le soleil se mourant jaunâtre à l'horizon !
- Le Ciel est mort. - Vers toi, j'accours ! (Mallarmé, L’Azur)
20 de junho de 2024
hoje, no Hemisfério Norte, o dia é mais longo do que qualquer
precedente
e a luz lavra e o poema inicia. Mas Mal-
larmé dizia que tudo permeava o verso
que podia ritmar-se a língua par-
tout exceto nos anúncios e na quarta página
dos jornais
hoje, no Guardian, novo recorde da Humanidade:
desbarato de combustíveis fósseis
apesar do viço de novas energias
Mallarmé ardia pelos vocábulos
areados, mais puros, da tribo
pepitas na navegação de massas—
o problema, diz o mensageiro de referência do Reino
Unido, é que a Índia
sozinha, torrou mais carvão do que a Europa
e a América avançada, no mesmo hemisfério, hoje
onde mais do que nunca permanece o Sol a ocidente.
Mallarmé também escreveu sobre o pálido
Vasco, a quem preocupava só a viagem ultra-
marina da Índia esplêndida e túrbida
e não obstante uma ave mono-
córdica gritaria, inútil jazida
sobre a cana invariável do leme
noite, desespero e pedraria.
Suponho que no século XIX a quarta página era a da necrologia
quando a Índia não era só, mas parte do Reino
Unido, de onde importou
até 1895
grandes quantidades de carvão
de onde também
se passou a extrair índigo
mais depressa do alcatrão do que da planta
O sol amarelando lá longe onde se morre!
Extinto é o azul. Eu já te acudo, verso!
Traz, matéria, olvido de erro e ideal cruel...
Hoje, britânicos e não
só
viajam
na ave de diesel
para irem praticar o tantra
ao terceiro país mais poluidor do mundo
(primeiro a China, segundo os Estados
Unidos) onde a consciência se dissolve
e o corpo não corre para o fim do amor
não és espelho do outro, és
susto, só porque não
tentas outra coisa, além
de meias pontas que são
gozo, depois desdém
e abandono, esse pavor
que antevias, mas também
deus é sismo, amor e só
viva ferida alegria
basta, é noite: um gato acode
da toca, cheira-te e explora
a medo, o teu já pode
revirar tudo agora
para Frank X Gaspar
Porque foi tanto em vão o que gostavas
mais te fugiu e deu troco menor.
Mas — se cobras — pra quê dizer amor?
se esperaste — pra quê dizer que davas?
És só um charco de eu e de chantagem.
Alguém testemunhou — alguém escreveu
disse ou depôs pelo teor do céu
que espelhaste sem ser à tua imagem?
alguém te soube autêntica altruísta
toda poalha e ar e maravilha?
(uma visão que não roçasse plágio...)
Mas há aquele brilho por contágio
estendendo a toalha a uma filha
de que te fez relato outro banhista.
A partir de Inger Christensen, Alfabeto, e de Edgar Allan Poe, “Um Sonho noutro Sonho”[1]
Se acreditamos que o planeta é sonho nosso
então talvez a nossa extinção o apague
mas pode ser que nem por isso que
fosse sonho o que criássemos e
o sonho o mundo – ademais, a
ciência tem provas de muitas
coisas criadas que existem
“as árvores de alperce ex-
istem”, diz a poeta Inger
Christensen - há coisas
que sobrevivem ao seu
criador: como alperces
às árvores de alperce
os filhos aos pais
e os pais a deus
mas como se-
ria o sonho
sem esse
sonhador
último e
o último
fruto do
mun-
do
se
acreditarmos
que existe o planeta
além do nosso sonho
e que as provas da ciência não se limitam
a coisas criadas meramente delirantes, subjetivas e gerativas,
então sabemos que o nosso sonho não acaba o mundo mas os seus
frutos a nós o seu veneno o nosso sonho neste tempo de “restantes” retornando
ao livro, cito
“em países cujo calor fará gerar precisamente a cor de carne que os alperces têm.”
[1] E guardo na mão fechada
Uns grãos da areia dourada...
Tão escassos!… mas num segundo
Dos dedos vão para o fundo,
E eu choro, ah, desabalado!
Oh, Céus! Por que os não aperto
Com um laço mais esperto?
Oh, Céus! Por que não posso eu salvar
Um só... das garras desse ímpio mar?
Tudo o que é visto, tudo o que é suposto
É só um sonho noutro sonho posto? (E A Poe, “Um Sonho noutro Sonho”)
A contrapelo, Christensen: “pensa como um espelho // de tão vital importância; vê / no seu trono de nada / o vértice da tempestade de areia; / vê o quão banalmente repousa / no mais pequeno grão de areia / uma engenhosa vida / fóssil encerrada / depois da viagem; vê só / com que tranquilidade carrega / o cardume de começos / do mar primevo; vê só / a simplicidade de um signo / no qual como substância / a verdade se vê reflectida / vê só com que verdade, / graciosidade; deixa estar as coisas; junta / as palavras, mas deixa / estar as coisas” (pp. 40-41)
O cheiro a sabão negro diluído
numa água decantada aos poucos
lembra o hamam de Aroumd em Marrocos
onde uma vez inteira me excluí
das pregas deste tempo subtraído.
Lá dentro uma gorda nos esfregava
e brusca era a flexão que nos amava
os corpos exalando e aluindo.
Teria também sido a arquiteta
da taipa arredondada do celeste?
o brando abaulamento a que alguém nu
na horizontal olhando um vidro azul
nadasse onde lhe fosse tudo aberto?
a partir de Lô Borges
não foi nada não foi não
não foi nada não é sim
quero como louca não
ser fantasma em tua boca
desatar um nó com outro
deixa-me fora de mim
ser avaro na clareza
é teu modo de ser caro
a mim só caos acompanha
como a qualquer coisa oca
em todo o caso me chama
de asco — eu ainda sonho
casar: elevar cada um
as asas do mesmo saco