Friday, October 04, 2024

Carregando o mundo

 

desde que o mundo é mar, gente pequena

na maioria mães, arregaça

de suas saias renda. De lá alça

o peixe que se enrola na morena

pele das pernas. De lá arrasta a alga

que por malhas e escamas se abraça

às faixas que no corpo a faina traça

O desenho e o desejo de tal cena:

a espuma na areia, febril cerveja

do oceano inquieto, mas sem pressa

avançando, ainda que mal se veja

o fundo onde se adensa, cresce, aquece

e acumula inércia; e a rede franze

num triângulo agudo cor de sangue




 













(poema sobre foto de Sinem Tas, "Carregando o mundo")

Monday, September 16, 2024

CERTA VEZ OLHEI PARA UM ESPELHO MAS NÃO CONSEGUI VER O MEU CORPO

                        a partir de Ghassan Kanafani

 

A minha argumentação é um documento; eu existo.

Aprendo isto de tanto ver o meu pai

 

sozinho à noite

traçando, retraçando 

um mapa

da Palestina, a tinta verde.

 

Antes de 1947, insistia ele, antes do retalho,

antes da nação se tornar história

 

antes de a minha língua confundir agradeço com sobrevivência

 

antes de eu escolher uma profissão que destaca

a morte da minha gente.

 

Uma máquina fotográfica derrete ao sol.

De muito longe, escuto os cliques moribundos do obturador, os pregões clamorosos 

     dos jornais 

que se atiram, o olhar cortante das órbitas.

 

Ergo-me diante do meu pai, as minhas próprias pupilas escancaradas

nos calos das suas mãos. Também eu desejo captar este momento,

 

retê-lo. Dizer, sim, esta violência é possível, e também dá prazer

olhar.

 

Mas quem é a audiência deste meu olhar

e até onde se espalha um flagelo

até amarelecer?



NOOR HINDI, in Dear God. Dear Bones. Dear Yellow, 2022, p. 6

Friday, September 06, 2024

Dupla Subordinação

 Diz-se que o santo, em sua humildade, expressara o desejo de ser enterrado no Colle d’Inferno, uma colina desprezada nos arredores de Assis, na qual os criminosos eram executados.  

                                                                                            Paschal Robinson, Vida de São Francisco

 

 

 

Como se fazia e ainda faz à criatura

cuja semelhança é dúvida e se tortura

investiga-se a coisa até só ser objeto

 

e ser possível

 

ver-se sofrer em direto. Também consola

achar que não tem alma o verme

que a sandália calca (só uma 

cedilha distingue o que pisa

do que enverga uma dupla sola)

 

São Francisco

 

mandaste para o Inferno teu próprio cadáver.

Aqui estuda-se o Outro até o desconhecer.






Saturday, August 31, 2024

 

para quê escrever

o disforme

esporeia a tristeza

sela o pouco de beleza

outra montaria a pele

doada predadora

que extenua

a radiante fera —

acho ali está

afinal lá continua 

feia

vagabunda lírica


tantos sulcos percorridos

hoje ocultos acamados

por outros pés nesses quartos
corpos em que enrolou

amarinhou quis muito 

alguns em todo 

o caso a maioria

 

nus 

 

para um crescer climático

ou final de despenho

à beira de matar

resgatar alguns

que empurraram a porta

depois bateram-na

dando por si trancada

sem estima sem ira

sem sentidos 

mónada na fechadura 

espiando temerosa

futuros desaparecidos

 

salvo exceções 

que não a envaidecem

e quase esquece

sem regozijo nisso

mas cujo nojo

procuro não procurar

(vai longe essa líbido

para o choro

sobre desperdícios) 

despido-nos normalmente

juro como se fôramos, átrios

 

nós

 

e se produzissem prodígios

Wednesday, June 26, 2024

Sobre espeleologia, ou o controlo da descida na doença da fronteira

Podes num dia com certeza

introduzir-te com frontal

pelos poços da alegria

ou pular da corda da tristeza


mas de cada vez a apneia

é mais breve

e a superfície escasseia

nestas zonas de conflito


ao todo a vertigem leva

quase menos do que o título



Friday, June 21, 2024

SOLSTÍCIO

                       Le soleil se mourant jaunâtre à l'horizon !


- Le Ciel est mort. - Vers toi, j'accours !  (Mallarmé, L’Azur)

 

20 de junho de 2024

hoje, no Hemisfério Norte, o dia é mais longo do que qualquer

precedente

 

e a luz lavra e o poema inicia. Mas Mal-

larmé dizia que tudo permeava o verso

que podia ritmar-se a língua par-

tout exceto nos anúncios e na quarta página

dos jornais 

 

hoje, no Guardian, novo recorde da Humanidade:

crescem ainda furos de ouro negro 

à margem de renováveis energias


Mallarmé ardia pelos vocábulos 

areados, mais puros, da tribo

pepitas na navegação de massas—

 

o problema, diz o mensageiro de referência do Reino

Unido, é que a Índia

sozinha, torrou mais carvão do que a Europa

e a América avançada, no mesmo hemisfério, hoje

 

onde mais do que nunca permanece o Sol a ocidente.

 

Mallarmé também escreveu sobre o pálido 

Vasco, a quem preocupava só a viagem ultra-

marina da Índia esplêndida e túrbida

 

e não obstante uma ave mono-

córdica gritaria, inútil jazida

sobre a cana invariável do leme

noite, desespero e pedraria.

 

Suponho que no século XIX a quarta página era a da necrologia

 

quando a Índia não era só, mas parte do Reino

Unido, de onde importou

até 1895

grandes quantidades de carvão

de onde também

se passou a extrair índigo

mais depressa do alcatrão do que da planta

 

O sol amarelando lá longe onde se morre!

 

Extinto é o azul. Eu já te acudo, verso!

Traz, matéria, olvido de erro e ideal cruel...

 

Hoje, britânicos e não 

viajam 

na ave de diesel

para irem praticar o tantra

ao terceiro país mais poluidor do mundo

(primeiro a China, segundo os Estados

Unidos) onde a consciência se dissolve

 

e o corpo não corre para o fim do amor

Monday, May 27, 2024

Bicho


não és espelho do outro, és

susto, só porque não

tentas outra coisa, além 

de meias pontas que são

 

gozo, depois desdém

e abandono, esse pavor

que antevias, mas também

deus é sismo, amor e só

 

viva ferida alegria

 

basta, é noite: um gato acode

da toca, cheira-te e explora

a medo, o teu já pode

revirar tudo agora

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