Wednesday, February 28, 2024

O problema do idealismo radical e da ampulheta em espelho

A partir de Inger Christensen, Alfabeto, e de Edgar Allan Poe, “Um Sonho noutro Sonho”[1]

 

Se acreditamos que o planeta é sonho nosso

então talvez a nossa extinção o apague

mas pode ser que nem por isso

pois foi o sonho que criámos e

o sonho o mundo – ademais, a

ciência tem provas de muitas

coisas criadas que existem

“as árvores de alperce ex-

istem”, diz a poeta Inger

Christensen - há coisas

que sobrevivem ao seu

criador: como alperces

às árvores de alperce

os filhos aos pais

e os pais a deus

mas como se-

ria o sonho

sem esse

sonhador

último e

o último

fruto do

mun-

do

se

acreditarmos

que existe o planeta

além do nosso sonho

e que as provas da ciência não se limitam

a coisas criadas meramente delirantes, subjetivas e gerativas,

então sabemos que o nosso sonho não acaba o mundo mas os seus

frutos a nós o seu veneno o nosso sonho neste tempo de “restantes” retornando 

ao livro, cito

“em países cujo calor fará gerar precisamente a cor de carne que os alperces têm.”



[1] E guardo na mão fechada

Uns grãos da areia dourada...

Tão escassos!… mas num segundo

Dos dedos vão para o fundo,

E eu choro, ah, desabalado!

Oh, Céus! Por que os não aperto

Com um laço mais esperto?

Oh, Céus! Por que não posso eu salvar

Um só... das garras desse ímpio mar?

Tudo o que é visto, tudo o que é suposto

É só um sonho noutro sonho posto?             (E A Poe, “Um Sonho noutro Sonho”)


A contrapelo, Christensen: “pensa como um espelho // de tão vital importância; vê / no seu trono de nada / o vértice da tempestade de areia; / vê o quão banalmente repousa / no mais pequeno grão de areia / uma engenhosa vida / fóssil encerrada / depois da viagem; vê só / com que tranquilidade carrega / o cardume de começos / do mar primevo; vê só / a simplicidade de um signo / no qual como substância / a verdade se vê reflectida / vê só com que verdade, / graciosidade; deixa estar as coisas; junta / as palavras, mas deixa / estar as coisas” (pp. 40-41)

 

Thursday, February 15, 2024

Hamam


O cheiro a sabão negro diluído

numa água decantada aos poucos

lembra o hamam de Aroumd em Marrocos

onde uma vez inteira me excluí

das pregas deste tempo subtraído. 


Lá dentro uma gorda nos esfregava

e brusca era a flexão que nos amava

os corpos exalando e aluindo.


Teria também sido a arquiteta

do alçado e inclinação correta

da taipa arredondada do celeste?

o brando abaulamento a que alguém nu 

na horizontal olhando um vidro azul

nadasse onde lhe fosse tudo aberto?

Saturday, February 03, 2024

Dísticos Espáticos

                                            a partir de Lô Borges


não foi nada não foi não

não foi nada não é sim


quero como louca não

ser fantasma em tua boca


desatar um nó com outro

deixa-me fora de mim


ser avaro na clareza

é teu modo de ser caro


a mim só caos acompanha

como a qualquer coisa oca


em todo o caso me chama

de asco — eu ainda sonho


casar: elevar cada um

as asas do mesmo saco

Tuesday, December 19, 2023

Boris Lehman

 

Dessa recherche guardo as mãos indagando-se
tuas: longas, carnudas, macias
tuas: léguas
minhas: miúdas, feiinhas, sapudas
meus: dedos que ainda desdenham anéis
e onde já mal cabem
 
que são mãos de meio século
quem diria: que palpites
que alegria: como leque
como as pernas daquele par
de outro filme francês
famoso anterior /  sob os lençóis
(num coro curto com as línguas:
lucrando com a falha da projeção)
em lugar de nascença
nosso despudor huis clos
 
nossa querença nouvelle
voilà
na semi-penumbra na sala da cinemateca
 
salvo a tela:
néon-azulada por mar que nunca chegou à Bolívia
(pelúcidas vagas raramente em filme tão nítidas)
sacolejada de sangue do bebé que escorçavam
(eu nunca vira escindir um prepúcio – assim
de perto) turva, peganhenta, areada com um parto:
cabeça-vulva-placenta que não esperávamos
tão densas
 
Nossas mãos num júbilo morse
vasculhando-se:
 
promessas






Tuesday, December 05, 2023

Delta do Mekong


sendo a fala

sequente da lubrificação

pela saliva

(ou no pesadelo vedada

pela secura da Hidra)

 

sendo o canal da voz

um rasto de condensação

às vezes ainda em bruto

no visível perdigoto

de um canto

 

sendo o mar cada vez

mais nostrum

e ácido o latim

fraturado

gás suando

 

do fundo

do húmus de bentos

se risque o escuro

com fósforo branco

onde floresçam cascos

de unhas ex-escravas

e dentes

cheios de coroas 

primitivas escaras

onde a amiba a anémona

a fundente molécula

os limos abram e expirem

 

lascaremos ainda 

da calota imergente

uma écloga ao futuro

que sub-

traímos


                                                (Francisco José Resende, 1867)

Sunday, November 26, 2023

25 de Quê?

                                para o José

 

Na rua do Século, quase a meio

da Revolução dos Cravos, frente

ao Min. do Ambiente, 24/

11/2023, ele veio

 

surpreso, azoado, um tanto alheio

ao sangue no cabelo, para trás.

Tinha dezasseis anos, o rapaz

só se lembrou da mãe, no receio

 

do que ela pensaria da notícia

da vara na cabeça no passeio.

Em volta, alguma gente lhe pedia

 

que não fechasse os olhos e doía

o enxerto do futuro. O polícia

— ninguém viu — pensaria no outro dia.





Sunday, November 05, 2023

[na cabeça do sonho:] Exercício do Limiar


Existe uma porta dentro da minha cabeça.

Existe uma fechadura em forma de feto,

ferida florindo, tojo raso, lume ainda assim.

Fecho os olhos, vejo-lhe a maçaneta, é uma língua

em brasa, brava, estendida brecha,

uma língua deitada de fora da minha cabeça.

Espeto-lhe a mão para a rodar,

sinto-lhe rugas e estases, entraves de sangue,

massajo-a um pouco para a aclarar,

é uma perra maçaneta e range quando se dobra para lá.

E vejo o que não sei nomear e quero como coisas novas,

são sobretudo utensílios e processos, um enrolador

ou gancho que serve uma cópula inadvertida,

uma assoalhada exígua onde se planta um lírio

e não tem teto, um regador para o lírio.

Debaixo dos meus pés devem estar então campos nus

e sem ofício nem pressa, mas antes toco picos

que terei de afastar para não me aleijarem as solas.

É um chão que no fundo me dá vontade de recuar,

mas fazer isso atrasar-me-ia quando ainda nem andei.

Então o som de um cardo esmagado, então o som do lírio

a receber a água, então o pé mais fresco, então isto

move-se, então um jambé e uma inscrição na sua pele,

então talvez a palavra, amor, goteje, da tal cópula, não 

completamente legível, enfim, calcula-se, focando caracteres

e deixando desparecer outros. Como está o tempo?

Como raio entra o tempo cá dentro, no tímpano

da gota lá atrás? Ora, salpica, embebe um ou dois

traços na pele. Ora cai a cântaros e toca, isto,

o amor. Exploro-o. Lírio, gancho, quarto mínimo.

O quarto lembra a lua e esta incha. A lua lambe 

a chuva. Está grávida e tem de dormir muito.

Não sei quantos quadrantes quando tudo roda.

Trino feliz do lírio, brusco estalo do cardo. 

Ainda não vi nenhum animal mas há-de haver insectos 

com tanta humidade. Algumas asas por perto a distrair

e certo melindre, insónia, o cabo do descanso. Da realidade

transplanto o domínio do cansaço e fica tudo estragado.

Encontro alguém que conheço bem. É Gabriel, o Arcanjo

e pergunta: Quantas braças da areia ao mar?

Gostaria de consultar o dicionário, não sei: 

Braças é uma medida de profundidade ou distância?

O feminino de membros, as curadoras do feno,

as medas. Neste mundo não vi o mar, não sei do fundo,

ainda só vi um enrolador e campos

com duas espécies vegetais, o quartinho

pequeno sem céu onde a lua despeja um excesso de gotas

e é preciso um regador e um instrumento feito de pele

e sedas a roçar a palavra que não repito por pudor.

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