Friday, August 24, 2018

Dia de Outono


Senhor: é tempo. O Verão foi muito demorado.
Lança a tua sombra sobre os relógios de sol,
e solta ventos sobre os campos lavrados.

Faz arredondar os frutos temporãos;
dá-lhes inda um par de dias meridionais,
leva-os à sua perfeição e espreme
o final doce e negro do vinho da estação.

Quem agora não tem casa, já nenhuma construirá.
Quem agora está só, vai continuar carente,
vai velar, ler, escrever cartas extensas
e vai cirandar aqui, ali, nas alamedas
sem pouso, entre trémulas folhas densas.



Rainer Maria Rilke

Thursday, August 23, 2018



Sou como chapa em que batem. Reflito. Tanto absorvo, côncava, para que riocheteiem. Não peço, mas não previno que me contem coisas que me desfibrilam as terminações. Não cresço. Disseram que eu era sonsa. A minha versão heróica da ofensa é ser turista. Mas sou essa menina que, aos cinco, a brincar sozinha no patio da Urbanização da Portela, ia somando mãos de anos todos iguais, incrédula com o incomensurável ato da imaginação. Os anos são como os prédios, blocos pintados de tiras uniformes, indistinguíveis à distância. É porque eu não tenho medo da morte que me ferem.

los muertos de mi felicidad

Um ex-namorado disse-me que a água parada absorve os espíritos. Jesus pediu ao pai que lhe afastasse o copo.  Acordo amiúde sedenta. Todas as noites retiro da torneira água corrente para levar para o quarto.  Quando chego, a cabeceira avoluma o copo da noite anterior. Eu retiro-o, mas por casa do gato que mija fora da caixa há várias portas fechadas, estou com sono e sem paciência. Então deixo-o no móvel da entrada. Perdoe-me o órfão que enquanto durmo deixa lá os pelos.

A Ceifeira Solitária

É vê-la tão só na seara,
A moça que no monte vai,
Ceifando e cantando consigo:
“Ficai, ou de leve passai.”
Corta e enlaça em feixe a espiga,
E canta uma triste cantiga;
É ouvir! Pois o fundo vale
Responde em eco musical.

Jamais cantou com tanto ardor
O rouxinol à tribo errante
Que acampa à sombra do calor
Nas areias do Levante.
Nem tem tão vibrante trinado
O cuco em Maio arvorado,
Quebrando do mar a mudez
Nas ilhas do mar escocês.

Diz-me alguém o que ela entoa? –
... Talvez sejam sofridas notas
De um passado que lhe doa,
Talvez já idas derrotas...
Ou outro humilde pranteio
Que hoje ao peito lhe veio;
Mágoa, perda, mau sentir,
Que passa e torna a afligir....

Fosse o que fosse, a moça cantava
Como se não findasse a toada;
Eu vi-a cantar no trabalho,
E sobre a foice curvada; –
Ouvi-a, quedo e calado,
E enquanto subia o valado,
Levava-a no coração,
Depois de muda a canção.


William Wordsworth

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