Saturday, March 27, 2021

A Malinche

1. 

Marina, la que yo sempre conmigo he traido

escreve-o a seu rei Cortés, meu concubino

aquele que me traz me trai, aportou num barco

me recebeu por escrava me trocou por dote

me ofereceu e retomou quando me viu útil

no interceder da fala nesse jogo bizarro

de telefone avariado 

 

em que participaram:

 

um padre (Aguilar), três línguas, o temido

Moctezuma, o soberbo meu amo, e uns quantos

caciques das terras, funcionando assim: Cortés

falava para o padre, o padre em maia para mim,

eu em náhuatl quer para o imperador quer 

para outra gente que de bom grado trocava,

como eu, os astecas, seus altares de sangue

pelos cristãos e o deus único que são três

 

batizaram-me de Marina e em revanche

chamaram os índios “o Malinche” a Cortés;

como eu, que já fui Malintzin, a cativa

que agora é um híbrido, um corpo

estupro, a mãe de Martín o mestiço

do México, a quem os caciques temem

e as mulheres sibilam la chingada

e já esquecem os filhos levados pelo tirano

anterior e dizem que eu trouxe traidor

mais ímpio, a varíola, que por ouro 

me despi, não honro a raça (mas como?

se morreu meu pai, me vendeu minha

mãe, se o abandono foi minha senha

o tráfico a minha vantagem, a dual

língua meu passe) que “não as represento”

 

mas qual entre nós não se sumiria já

criada para desembarcar rainha

qual de nós não sofreu de redução

à míngua, qual de nós, chingada, não teria

se pudesse, trocado de mãos e de língua?

 

 

2.

 

Os meus ovos, logo os pus na cesta

da indiferença do ego—da equi-

distância da sorte; se nasci

nobre, me enjeitaram por molesta

me tomaram por morta, por cativa

 

moeda, me passaram entre reinos

donos, credos. Por minha parte brandi

sobre um império dotes de linguista.

 

Quando com Cortés de raspão passámos

no retorno da conquista pela terra

de onde parti, a mãe velha, o irmão

que herdou—deixei-os gratos, pasmos:

nada de nativo me era congénito.

 

Eu pude ser real na abdicação.

 

 

Sunday, March 07, 2021

Ainda sobre tradutores e o acesso à habitação (contraditório)

 Reparo que o meu último post teve um nível exagerado de leituras, o que talvez indique que esteja a ser comentado noutros canais. Gostaria de conversar mais sobre o assunto aqui, queiram deixar contributos na caixa. Isto porque tenho algum desconforto nisto. Reli o poema de Marieke Rijneveld. Ocorreu-me que esteja a querer dizer que a sua decisão tenha implicado descartar estrategicamente qualquer ideia sobre tradução (colocar-se nos sapatos do outro) em favor de uma "habitação mais inclusiva do poema", já que a sua recusa obrigará necessariamente a algo em que antes não se pensou: procurar e contratar um(a) tradutor(a) negro(a). Isso teria um lado positivo, desenvolvendo também o debate sobre o "quão" colorida têm sido a nossa literatura e a tradução (eu acho que as duas têm cor e sexo, ainda que essa diferença não seja discernível na leitura, e que idealmente se procure a trangressão - até mais do que a inclusão). Entretanto, de forma ambivalente, a editora declarou estar à procura de "uma equipa" - porquê? Rijneveld poderá até voltar à cena com uma colega negra, o que não sei se favoreceria muito a causa. Ou a ideia da "equipa" poderá transformar a concepção da profissão: lançar-se-á assim a tendência de ter um comité de diversidade para assegurar o resultado inclusivo da obra traduzida? (e isto mesmo que o original nem seja assim tão inclusivo?)

Talvez se encontrasse outra maneira de fazer a justiça reparadora pela falta de acesso à profissão, sem implicar comprometer, de uma maneira muito perigosa para o futuro, a latitude e o exercício (re)generativo da tradução literária. E preferia que Rijneveld fizesse uma declaração política clara sobre as razões da sua desistência. 

Saturday, March 06, 2021

Raças de Tradutores


Não sei quantos tradutores negros existem no meu país, nem na Holanda. Admito que não conheço nenhum(a) tradutor(a) literário(a) não branco(a), mas decerto que os há e porventura terão mais dificuldades em trabalhar na área do que eu. Nesta, como noutras profissões, sou a favor de políticas de incentivo ao ingresso no mercado de trabalho das minorias, inclusive beneficiando-as sobre os seus congéneres maioritários, numa tentativa de desarmadilhar injustiças sócio-históricas. Por isso, creio ser interessante o caso das manifestações contra a escolha da poeta holandesa branca Marieke Lucas Rijneveld para traduzir a obra da poeta negra Amanda Gorman, que recentemente declamou o poema “The Hill we Climb” na cerimónia inaugural da presidência de Joe Biden. É interessante pelo facto de ter levantado a lebre e agora falar-se dela, e podermos todos perguntar-nos afinal onde estão os tradutores negros, para além de ponderarmos o âmbito das “políticas de identidade” e o que possa ser a parcialidade da representação. 

No entanto, a acusação da mais veemente detratora desta escolha, a ativista cultural negra Janice Deul, acaba por atirar ao lado da lebre e ferir a própria possibilidade de tradução. Disse Deul que era uma “oportunidade perdida” a editora em causa, Meenhof, não ter procurado alguém que, como Gorman, fosse “uma artista de spoken word, jovem, mulher e orgulhosamente negra.” Nem interessa muito que a escolha da editora tenha recaído precisamente sobre Rijneveld por esta ter alcançado o sucesso bastante nova (tem agora 29 anos e Gorman 22) e por, assumindo-se como pessoa de género não-binário, habitar, como Gorman, um campo de diferença. Interessa que o argumento de Deul retira à tradução a possibilidade de comunicação intercultural que justifica a sua existência e a sua necessidade. Ou seja, no limite, só Gorman teria legitimidade para traduzir Gorman, o que, mesmo imaginando que ela soubesse várias línguas, lhe retiraria a amplificação / atualização de sentidos conferida pela tradução de outrem. E em última análise, teremos de suspeitar da própria tradução e porventura aboli-la, já que, sendo as línguas inseparáveis das suas culturas, a transposição entre estas pode ser encarada como uma substituição da cultura do outro, conducente à rasura da  diferença identitária. Só que a convicção contrária parece muito mais produtiva para um mundo melhor: a de um(a) profissional de tradução ter a capacidade de transportar culturas e contagiar identidades nas línguas que transpõe.

Rijneveld resolveu abdicar, dizendo que se achara capaz de honrar as palavras de Gorman (a qual também se disse honrada pela escolha de Rijneveld), mas vendo bem estava “numa posição de pensar e sentir[-se] dessa forma, quando muitos não estão”. Gostaria de saber se no entender de Rijneveld, ou de Deul, estes últimos incluem os que um dia possam vir a escolher, como Amanda Gorman, recitar poesia para saudar a tomada de posse de um presidente branco, heterossexual e homem mais velho?

Entretanto Rijneveld, no rescaldo da sua desistência, lançou um poema, “Todo Habitável”, cujo título traduzo da tradução inglesa do holandês, feita por uma mulher, de que o Guardian reclamou o exclusivo (quantos ímpetos proprietários há afinal neste mercado?). Perpassam-no várias contradições emocionais, desiguais, e gosto precisamente de um verso que nos fala das “arruaças de não saber”. O sujeito desse poema, porém, afirma um “orgulho rochoso”, declara dar o peito às balas, procura meter-se noutros sapatos e fugir a que o metam em caixas, mas acaba por render-se, capaz de perceber quando o lugar não é dele(a) e se deve “ajoelhar pelo poema porque outra pessoa o poderá tornar mais habitável”. Mas não é sempre assim? E não é a humildade de se ser precário veículo para a habitação alheia do poema que subjaz ao datável, limitado, tradutor?

   Está em causa também a potência da empatia, muito associada à tradução, e não isenta de um certo lastro ideológico helénico-cristão, cuja tendência usurpadora devemos acautelar. Em todo o caso, continuo a achar que é boa ideia tentar vestir a pele do outro, e péssima traçar linhas em que negros sejam melhor traduzidos por negros, mulheres por mulheres, e muito menos brancos por brancos. Gostaria, ao invés, que muitos brancos fossem traduzidos às cores para que essa amplificação/atualização de sentidos da tradução possa também servir para desconstruir, questionar, apropriar ou descartar. Lembre-se, para terminar, o visionário projeto de descolonialização da literatura ocidental teorizado pelo brasileiro Haroldo de Campos no ensaio (entre outros) “Da razão antropofágica” (1981): devorar o autoritário para alimentar o tropical.

Friday, March 05, 2021

Urtiga

eu quero tudo mas tudo

não está acessível ainda

assim às vezes primavero




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