Monday, January 21, 2019

A traição do eco

Tens pena de não teres dirigido
(ias sonhando, bateste contra o muro
onde se lia com brilhinhos de ouro)
o primeiro eco nunca repetido

(foi ontem, ao fundo, o espelho elevado
do rio à rua dos lagares). Veio
donde? Mundo “templo de muros cheios
de emblemas, imagens e ditados

da deidade” – Emerson, e o crivo
peneirado em Baudelaire – “La Nature…
ah, floresta de andaimes, graffiti vivo.

Fazer o quê? esperar na tradução.
Esquece o muro, rouba o rio e o ouro
(à rua)
deixa em seu lugar a imitação.

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[Não sei se vêm daí, mas compreendi a justiça dos nomes da rua dos lagares e do largo da graça de quem desce, e para onde, ao meio-dia do domingo de ontem, a dita rua fazia subir o rio como um espelho com uma cortina lavada pela luz do sol, tudo transparente, lívido puro e líquido. Não fui só eu (se acaso me julgam dada a halos epifânicos, direi – até vinha da missa), que achei um milagre, também um par de turistas ao frio ali ficou especado, alongando uma pronúncia estrangeira na exclamação de Meu Deussh!, assolapados de beleza, os físicos imobilizados por essa estupefação espiritual que se diz awe em inglês, e em francês, por uma vez mais lhano, bouche bée.  Penso que me aparecem poemas por duas razões: para alterar a vida, como chicote elétrico de alergia às coisas, ao nosso nojo e dos outros, por uma espécie de repulsa da inanidade, da malícia e da fealdade, ou então para passar a mais gente o que precisamente vai passar e a que queremos voltar, queremos gravar para mostrar e mitigar a maioria do quotidiano que é a prisão e a invalidez. Foi isso que quis fazer com “foi ontem ao fundo o espelho elevado / do rio à rua dos lagares”, que provavelmente ficaria melhor sem vírgulas, mas já era outra coisa, ora, não tem a pontuação ocidental que distanciar sempre a ideia da escrita, pode fazer respirar o relato vivido. Ou seria então a outra pulsão do poema, querer alternar por dentro a rebentação da luz, embebendo-se até à vertigem de se afogar dela?


Como na realidade, o sonho. Sonhei realmente (não foi ontem, há muito tempo) que via um muro onde estava escrito um poema, e eu lia-o mesmo, era sólido e magnífico, não estava de carro, estava a pé numa espécie de baldio aquintalado (o “dirigido” e a impressão de choque são o acidente a entrar no poema, os dias últimos em que estampei um automóvel e perdi a carteira) e sabia que era um imperativo impossível levar o texto do sonho à vida. Iria acordar e querer ficar no sonho até me (o) incorporar. Juro até que sonhei tudo isso antes de ler o ensaio “The Poet” de Emerson, onde Baudelaire foi enxertar os versos de Correspondances (também Melville lá terá bebido para Bartleby, “os muros circundantes, de espantosa espessura... o carácter egípcio da maçonaria pesando soturnamente, ... e um só tufo de erva a crescer por baixo dos pés... por estranha magia, pelas brechas, forragem esparsa caída quem sabe de pássaros, por onde parecia brotar o coração das pirâmides eternas”). Não juro que no sonho as letras se douravam, aí terá sido a tentativa da transcrição a lembrar-me de Quental: “Abrem-se as portas d’ouro, com fragor... / Mas dentro encontro só, cheio de dor, / Silêncio e escuridão – e nada mais!”  Todos os homens a quererem apanhar o poema. O que este faz à experiência ou ao sonho deve fazê-lo a tradução ao poema. A mesma coisa, com o acidente, se for para mudar.]

2 comments:

Adriana Crespo said...

Fantástico.

dama said...

a leitora mais rápida do Oeste :) deixei umas notas ao poema.

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