Wednesday, June 24, 2020

Vitória de Samotrácia



Este cordão embaraçado de trapilho esta
rodilha em várias turvas águas das tentativas
de limpeza do sangue
entre filha e mãe e filha
os grumos negros os espessos sudários
da tristeza que ascendem às avós
às suas mães antes delas
(a bisavó Xxxxxxx cuja avareza)
as gerações sucessivas abaixo e acima
das mães lavando o sangue
pisando na penumbra o pranto, veneno
involuntário por herança (que
infância desmaiada com a surdina
de pais maridos em baixo da escada)
o sangue e a água inquinadas as mães
e as filhas por tabela inclinadas mais
ao fundo
sobre o lodoso furo o espelho escuro
o desbarato do nojo sem que
alguma delas perdoe
e por muito se condoa
nenhuma absolva.
O que eu penso quando penso em ti
filha, é numa estátua

a primeira das poucas
de mulher que é energia
sustida ao centro por umbigo
notável liso livrando-se.
Penso nas asas que arquejam
do seu pescoço degolado
na cinese, na estesia do seu
movimento, no êxtase dos sudários
descidos, na maravilha
que terá sido esculpi-la
sem o artífice conceber
que ela, a Nixe, seria
tanto mais candente quanto
se partisse, as asas mais salientes
derivando dos braços podados;
o ímpeto mais eficaz
dada a abdicação da mente;
um certo desdém pelo íntegro
poupando-a ao sal e ao enxofre
e ao atroz fatum das senhoras
anteriores que olharam para trás.

Apenas isto, claro, é analogia
com defeito:
falta o difícil, da violenta conquista
moderar o esmeril, punção
que risque sobre os ombros
proeza mais que obra, projeto
de interminada criação, mais
que cinzel, leveza mais que agonia
do sangue, globo ou glóbulo
mais que dúctil pedra
ou perda herdada – rasgo
ou resgate do afeto, uma água
rebentada
é um choro— que seja rega.

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