Saturday, December 28, 2024

In Memoriam


à Mariana Branco, que me ensinou  

a posição da árvore e outras 

espiritualidades a consolidar

 

Apontadas ao vazio, as nossas rótulas

paralelas a uma linha imaginária 

entre os olhos e o longe — há que arredondar

o irracional infinito — mostravas-me

como elevar a zero a coluna, raiz

 

das dez mil coisas, em que palavras

tombam, espelham, espalham.

Palavras, sobretudo as viperinas

que propagam. Deste-me o talismã

espanando o ar entre nós: Retira

 

era o que dizias, diluindo injúrias

de brigas vãs num aparar de sílabas

átomos, minutos, num ápice limpos.

Pior era a magia de anular o ácido

da ferida que sempre mais incide

 

contra nós... morde como formiga.

Disseste-me que nenhuma se deve

— Amiga —matar (por mais pequenino

o crime), que a formiga se põe a andar

com casca bolorenta de citrino

 

que a língua sarrenta revela o karma

do assassino. Treinaste-me a rodá-la

com a saliva na barriga; que afinal

se ascende, se cede, sem ondas...

de onde (será certo?) esse destino

 

para que foste cedo, insanamente hirta

tu, que sorrias tão profusa, devolverás 

ao céu — ao pó, ao nada (e eu aceito?

e isso prova que venceste a foleirice

da imagem? deste plano?) — tua luz dourada.

Saturday, November 16, 2024

Rípio

no muro ao sol, pedras roídas

somam tempo ao tempo.

O tema, supõe-se, é paralelo

no muro à sombra

no mais sombrio poema


nos bois de cornos apontados

a outros bois, no pastor

cujo bordão é uma enxada:

mas espalha a luz o aço

ao trilho, da cunha à torre


de alta tensão, o firmamento 


nem sempre se faz pedra

boi, bordão, ou cunha igual —

busca-se outro elemento

ou novo material, ou o muro

tomba, continua a gente

Calar

a quase homonímia

emudecer

e humedecer

ou a antinomia

homo

e nemo


não a

    barca

o que cala o mar


a cada grau

re cru

de

    s

        cer


nau fraga

o espaço


da quilha

à linha 

______ d'água

Thursday, October 10, 2024

Desligar e não ligar


curto desse teu swag

tua esbelta silhueta

o people até se engasga

com a nossa pirueta

nós com os bofes de fora

eles todos upside down

bora pôr o mundo em off

depois outra vez no on


quero ter contigo um date

no teto do mundo a pique

chegas lá com o teu skate

eu tenho patins e bike

se te cansas guio eu

e tu andas à pendura

fazermos slide no céu

é uma mega loucura


mêmo uma cena marada

o clima ‘tá bué da hot

o people lá na bancada

gira todo num virote 

bora desligar, my love

bora pôr o mundo em pause

vamos sair e not

not voltar a entrar



Foto de António Carlos Pereira da Costa

Monday, September 16, 2024

CERTA VEZ OLHEI PARA UM ESPELHO MAS NÃO CONSEGUI VER O MEU CORPO

                        a partir de Ghassan Kanafani

 

A minha argumentação é um documento; eu existo.

Aprendo isto de tanto ver o meu pai

 

sozinho à noite

traçando, retraçando 

um mapa

da Palestina, a tinta verde.

 

Antes de 1947, insistia ele, antes do retalho,

antes da nação se tornar história

 

antes de a minha língua confundir agradeço com sobrevivência

 

antes de eu escolher uma profissão que destaca

a morte da minha gente.

 

Uma máquina fotográfica derrete ao sol.

De muito longe, escuto os cliques moribundos do obturador, os pregões clamorosos 

     dos jornais 

que se atiram, o olhar cortante das órbitas.

 

Ergo-me diante do meu pai, as minhas próprias pupilas escancaradas

nos calos das suas mãos. Também eu desejo captar este momento,

 

retê-lo. Dizer, sim, esta violência é possível, e também dá prazer

olhar.

 

Mas quem é a audiência deste meu olhar

e até onde se espalha um flagelo

até amarelecer?



NOOR HINDI, in Dear God. Dear Bones. Dear Yellow, 2022, p. 6

Friday, September 06, 2024

Dupla Subordinação

 Diz-se que o santo, em sua humildade, expressara o desejo de ser enterrado no Colle d’Inferno, uma colina desprezada nos arredores de Assis, na qual os criminosos eram executados.  

                                                                                            Paschal Robinson, Vida de São Francisco

 

 

 

Como se fazia e ainda faz à criatura

cuja semelhança é dúvida e se tortura

investiga-se a coisa até só ser objeto

 

e ser possível

 

ver-se sofrer em direto. Também consola

achar que não tem alma o verme

que a sandália calca (só uma 

cedilha distingue o que pisa

do que enverga uma dupla sola)

 

São Francisco

 

mandaste para o Inferno teu próprio cadáver.

Aqui escande-se o Outro até o desconhecer.






Saturday, August 31, 2024

 

para quê escrever

o disforme

esporeia a tristeza

sela o pouco de beleza

outra montaria a pele

doada predadora

que extenua

a radiante fera —

acho ali está

afinal lá continua 

feia


para quê escrever se é disforme o que se escreve 

se o disforme esporeia a tristeza e sela o pouco de beleza 

ainda tangível ainda a flor tonal da pele?


outrora ou se outra fosse mais valia antes

montar a pele outra montaria a pele virável correria

predadora extenuada ah tanto de beleza e apoteose 


na radiante fera

e tu captora achas cá está ela tres-

passei-a no papel mas afinal lá continua e te devora feia


vagabunda lírica


tantos sulcos percorridos

hoje ocultos acamados

por outros pés nesses quartos
corpos em que enrolou

amarinhou quis muito 

alguns em todo 

o caso a maioria

 

nus 

 

para um crescer climático

ou final de despenho

à beira de matar

resgatar alguns

que empurraram a porta

depois bateram-na

dando por si trancada

sem estima sem ira

sem sentidos 

mónada na fechadura 

espiando temerosa

futuros desaparecidos

 

salvo exceções 

que não a envaidecem

e quase esquece

sem regozijo nisso

mas cujo nojo

procuro não procurar

(vai longe essa líbido

para o choro

sobre desperdícios) 

despimo-nos normalmente

juro como se fôramos, átrios

 

nós

 

e se produzissem prodígios

Wednesday, June 26, 2024

Sobre espeleologia, ou o controlo da descida na doença da fronteira

Podes num dia com certeza

introduzir-te com frontal

pelos poços da alegria

ou pular da corda da tristeza


mas de cada vez a apneia

é mais breve

e a superfície escasseia

nestas zonas de conflito


ao todo a vertigem leva

quase menos do que o título



Friday, June 21, 2024

SOLSTÍCIO

                       Le soleil se mourant jaunâtre à l'horizon !


- Le Ciel est mort. - Vers toi, j'accours !  (Mallarmé, L’Azur)

 

20 de junho de 2024

hoje, no Hemisfério Norte, o dia é mais longo do que qualquer

precedente

 

e a luz lavra e o poema inicia. Mas Mal-

larmé dizia que tudo permeava o verso

que podia ritmar-se a língua par-

tout exceto nos anúncios e na quarta página

dos jornais 

 

hoje, no Guardian, novo recorde da Humanidade:

crescem ainda furos de ouro negro 

à margem de renováveis energias


Mallarmé ardia pelos vocábulos 

areados, mais puros, da tribo

pepitas na navegação de massas—

 

o problema, diz o mensageiro de referência do Reino

Unido, é que a Índia

sozinha, torrou mais carvão do que a Europa

e a América avançada, no mesmo hemisfério, hoje

 

onde mais do que nunca permanece o Sol a ocidente.

 

Mallarmé também escreveu sobre o pálido 

Vasco, a quem preocupava só a viagem ultra-

marina da Índia esplêndida e túrbida

 

e não obstante uma ave mono-

córdica gritaria, inútil jazida

sobre a cana invariável do leme

noite, desespero e pedraria.

 

Suponho que no século XIX a quarta página era a da necrologia

 

quando a Índia não era só, mas parte do Reino

Unido, de onde importou

até 1895

grandes quantidades de carvão

de onde também

se passou a extrair índigo

mais depressa do alcatrão do que da planta

 

O sol amarelando lá longe onde se morre!

 

Extinto é o azul. Eu já te acudo, verso!

Traz, matéria, olvido de erro e ideal cruel...

 

Hoje, britânicos e não 

viajam 

na ave de diesel

para irem praticar o tantra

ao terceiro país mais poluidor do mundo

(primeiro a China, segundo os Estados

Unidos) onde a consciência se dissolve

 

e o corpo não corre para o fim do amor

Monday, May 27, 2024

Bicho


não és espelho do outro, és

susto, só porque não

tentas outra coisa, além 

de meias pontas que são

 

gozo, depois desdém

e abandono, esse pavor

que antevias, mas também

deus é sismo, amor e só

 

viva ferida alegria

 

basta, é noite: um gato acode

da toca, cheira-te e explora

a medo, o teu já pode

revirar tudo agora

Saturday, April 13, 2024

Guilt Skip

                                     para Frank X Gaspar

 

Porque foi tanto em vão o que gostavas

mais te fugiu e deu troco menor.

Mas — se cobras — pra quê dizer amor?

se esperaste — pra quê dizer que davas?

 

És só um charco de eu e de chantagem.

Alguém testemunhou — alguém escreveu

disse ou depôs pelo teor do céu

que espelhaste sem ser à tua imagem?

 

alguém te soube autêntica altruísta

toda poalha e ar e maravilha?

(uma visão que não roçasse plágio...) 

 

Mas há aquele brilho por contágio

estendendo a toalha a uma filha 

de que te fez relato outro banhista.

Wednesday, February 28, 2024

O problema do idealismo radical e da ampulheta em espelho

A partir de Inger Christensen, Alfabeto, e de Edgar Allan Poe, “Um Sonho noutro Sonho”[1]

 

Se acreditamos que o planeta é sonho nosso

então talvez a nossa extinção o apague

mas pode ser que nem por isso que

 fosse sonho o que criássemos e

o sonho o mundo – ademais, a

ciência tem provas de muitas

coisas criadas que existem

“as árvores de alperce ex-

istem”, diz a poeta Inger

Christensen - há coisas

que sobrevivem ao seu

criador: como alperces

às árvores de alperce

os filhos aos pais

e os pais a deus

mas como se-

ria o sonho

sem esse

sonhador

último e

o último

fruto do

mun-

do

se

acreditarmos

que existe o planeta

além do nosso sonho

e que as provas da ciência não se limitam

a coisas criadas meramente delirantes, subjetivas e gerativas,

então sabemos que o nosso sonho não acaba o mundo mas os seus

frutos a nós o seu veneno o nosso sonho neste tempo de “restantes” retornando 

ao livro, cito

“em países cujo calor fará gerar precisamente a cor de carne que os alperces têm.”



[1] E guardo na mão fechada

Uns grãos da areia dourada...

Tão escassos!… mas num segundo

Dos dedos vão para o fundo,

E eu choro, ah, desabalado!

Oh, Céus! Por que os não aperto

Com um laço mais esperto?

Oh, Céus! Por que não posso eu salvar

Um só... das garras desse ímpio mar?

Tudo o que é visto, tudo o que é suposto

É só um sonho noutro sonho posto?             (E A Poe, “Um Sonho noutro Sonho”)


A contrapelo, Christensen: “pensa como um espelho // de tão vital importância; vê / no seu trono de nada / o vértice da tempestade de areia; / vê o quão banalmente repousa / no mais pequeno grão de areia / uma engenhosa vida / fóssil encerrada / depois da viagem; vê só / com que tranquilidade carrega / o cardume de começos / do mar primevo; vê só / a simplicidade de um signo / no qual como substância / a verdade se vê reflectida / vê só com que verdade, / graciosidade; deixa estar as coisas; junta / as palavras, mas deixa / estar as coisas” (pp. 40-41)

 

Thursday, February 15, 2024

Hamam


O cheiro a sabão negro diluído

numa água decantada aos poucos

lembra o hamam berbere de Aroumd

onde uma vez inteira me excluí

das pregas deste tempo subtraído. 


Lá dentro uma gorda nos esfregava

e brusca era a flexão que nos amava

os corpos exalando e aluindo.


Teria também sido a arquiteta

do alçado e inclinação correta

da taipa arredondada do celeste?

o brando abaulamento a que alguém nu 

na horizontal olhando um vidro azul

nadasse onde lhe fosse tudo aberto?

Saturday, February 03, 2024

Dísticos Espáticos

                                            a partir de Lô Borges


não foi nada não foi não

não foi nada não é sim


quero como louca não

ser fantasma em tua boca


desatar um nó com outro

deixa-me fora de mim


ser avaro na clareza

é teu modo de ser caro


a mim só caos acompanha

como a qualquer coisa oca


em todo o caso me chama

de asco — eu ainda sonho


casar: elevar cada um

as asas do mesmo saco

Blog Archive

Contributors