Thursday, July 11, 2019

de Sonetos a Orfeu, 1ª parte, 22 (I)

 Somos a propulsão.
Mas o tempo que passa
é só coisa escassa
na eterna duração.

Tudo o que precipita
num instante termina;
pois o ser que habita
primeiro nos anima.

Jovens, arrojai o ímpeto
não à veloz deriva,
não ao esforço de voo.

Tudo em repouso:
Escuro e límpido.
Flor e livro.

             Rainer Maria Rilke 

Aquela primeira palavra Treibenden, é tramada: rara no contexto (e no plural), tem a força e o som do motor de arranque; também quer dizer mola e nascente (como o inglês spring), impulso e velocidade — motriz, enfim. Pensei em "turbinas" - "dínamos" e "cabrestantes" risquei, infelizes - gostava de "engrenagem", mas não ligava com "duração / permanência" (Bleibenden - ah, o alemão, maravilha especular, ou então é só o de Rilke, não sei, trinco esta língua apenas há um ano, e é o mesmo gesto de morder na descoberta de um poeta, até ver onde há gosto ou gozo ou afta, onde se julga saber fazer eco, senão voz, e isso para mim é começar a entender). Entendo em Treibenden o reconhecimento do tremor de nos lançarmos no moderno. 

Ana Hatherly, em Rilkeana, glosou "somos os apressados" e depois seguiu o jorro da água (de onde entretive possíveis equivalentes como "Somos os estrépitos", "Somos a(s) efervescência(s)"): "Corremos empurrados / como água que se despenha / duma alta cascata. // Caindo / a água paira (...) / e depois prossegue / esquecida do voo // Para quê o voo / a queda / a flor?"

Traduzir há-de ser o mesmo que o lançamento na água, graças que agradeço. Fazem-me aproximar até dos que se fincam a uma só língua como terra, contanto estejam em extinção – bem como aqueles que como Fernando Pessoa, malgrado o movimento entre línguas, diziam ter uma como pátria (Rilke, meio apátrida, mais plurilingue ainda, pensaria o mesmo?) *. Terá sido precisa, porém, a precedência de Lutero, a tradução para agarrar um alemão que descesse à terra (eu admiro Lutero por se ter despido de Lutero enquanto traduziu o Novo Testamento, por ter forjado o nome de Junker Jörg para apanhar - não um frade, um cavaleiro - vernáculos com os camponeses e depois correr a amanhar, do alto do seu quarto no torreão de Wartburg, essa língua com que os homens da terra podiam conversar com Deus**). 


* Escreveu em francês. Ver a introdução de Maria Gabriela Llansol e aquilo que ela diz sobre traduzir Rilke como vergel, jardim de um único autor desconhecido de campa rasa: "Todos os autores que eu amo formam um labirinto no seu texto" (p. 8)

** Quando primeiro escrevi isto, questionei a universalidade do público a que se destinava a tradução de Lutero, conhecendo as suas culpas no cartório anti-semita. Mas não: só na sua "Carta Aberta sobre a Tradução" Lutero, numa acusação tangente ao texto rival da "Bíblia de Worms"(diz padecer de descrença em Cristo por contar com judeus no seu grupo redatorial),  esboça um trejeito do ódio étnico que se agravaria com a idade. Incomoda constatar também neste homem a difusão do mal, mas consola reconhecer que ao menos o suspendeu, quiçá como parte do despojamento de caráter em que, agrada-me continuar a imaginar, se abnegou, para traduzir.
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