Thursday, December 17, 2020

Isaura e a Kriptonite

No final de Huck Finn os rapazes, ávidos

de cabeças a prémio e melodrama,

ocultam a Jim o decreto da sua abolição.

Este, dócil às correntes, permanece

num catre com aranhas e ratos e

andrajoso, mártir, lavra com o seu sangue

os ditados deles nas paredes do catre, é

fabuloso o mundo dos meninos. 

 

Haverá sempre outras leituras, de resto

a minha carece de humor e esquece

o rio, o dialecto, a jangada do selvagem

e as margens de bufões no Tennessee

dessas aventuras viris a que já cheguei 

tarde e nos desenhos animados, em 

vez de Sade eu lia a condessa 

de Ségur e os Grimm.

 

Era a história dos irmãos a engordar

na vivenda de chocolate, que sim

podia ter sido inventada por mim, cheguei

a convencer-me – não sabia do livro

e a ausência de prova era suficiente:

nem era crível que tal quantidade de mal

me fosse anterior, o mundo era ileso

de Herodes, do abandono e culpa 

que só

cá dentro se podia produzir

 

entende, a catequese era contígua 

ao seminário dos Olivais.

Aí havia a gruta do gorila

onde se tinham passado coisas

de que os pais não sabiam, não podiam

livrar-nos e cheirava a mijo no mato

dos arrabaldes, onde ficava uma outra casa:

essa de ruínas, com a chaminé quebrada

de onde saíam fumos e delinquência

e um palhaço maligno, cobarde

como no thriller do Stephen King e tudo

o que eu também inventei mais tarde

 

para livrar-me do mal que só podia ser

portanto posterior à minha consciência

 

descomposta por exemplo como os corpos

das noivas de Barba Azul uma a uma

no closet com pés pequenos a dar a dar 

o meu teatro de marionetas, o meu

patíbulo de brinquedo, os estribos

e a chave de sangue não lavável

e a escrava Isaura andava nua 

pelo meu país da barriga para cima

pendurada a uma árvore, zurzida

por versgata, branca e mansa

de falas, num estilo de cativa a facilitar

a projeção identificativa 

com o negativo escuro, subliminar

 

a balouçar no closet, one little

two little, three

penduradas

uma vez consumado o ballet

das núpcias, os pés

da heroína, que vestia branco

contrariada quando não a chicoteava 

da cintura para cima o bruto

Leôncio, como ao negro André—

 

o fascínio pelos órgãos adivinhados

que os miúdos conhecem

sem atinar no concreto

prazer: um complexo de pecados

nos prédios de subúrbios e senzala.

 

A minha kriptonite as mãos na cara

e os dedos entreabertos do medo

nos olhos aumentados de lágrimas

vermelhos, lascivos

os lábios pulsando grossos

ao ritmo dos silvos, os flagelos

nos corpos enquadrados pela estaca

e a chibata, como se esta, como

se tudo o que eu inventei os beijasse

 

como vir a comer um coração

sacrificado à nossa mão, como o imaculado 

de Maria, com um espeto de lírio

ou são sebastião lacerado contra o cipreste

tétrico e com as fraldas de linho

à época

ou a gárgula de João Batista na bandeja

gástrica de Salomé

nas pagelas dos avós

quando dormíamos na terra. 

 

A igreja minha madre

e os espinhos inventados por mim

para lavrar a sangue no meu catre

o que escrevo numa esteira

de cravos

 

volta e meia, portanto 

entregava-me a Cristo, do alto 

da minha invenção eu achava

que tinha perfil para a coroa

e para o vinagre, para o Gólgota

só não entendia porque morria

o ladrão do lado miserável se 

eu o tinha salvo, não sabia

de resto, avisou-me o meu irmão 

enquanto eu lhe dava a outra face

que já tinha tentado, não se conseguia

não era pera doce, não sei como

abria-se a janela do prédio, Cristo 

tinha primos, havia o super-homem 

e a kriptonite e os meus pés

mínimos, entende, eu achava 

que me podia pendurar 

 

Mark Twain era para meninos.

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