Tuesday, April 22, 2014

A Descida da Cruz


Talvez à maioria hoje mais agrade
a forma, conquanto gore, e pouco
helénica, sobre o suplício louco
humano, que um deus por caridade

se diz sofrer ou dar em sacrifício
do mal, que natural nos é. E como
pôde amor, escarnecida a fé,
exposto o lado, o ferro, o orifício?

Lancetado ao regaço da Pietá,
vertendo desse flanco claro pus,
tocando o morno sangue à boa mão,
lambendo o choro manso ao seio seu,

e a longa banda do sudário, a luz
banhando como acordeão do céu,

que arte face a tal morte? Awe, susto,
insídia, o que furta e seu flagelo:
– Porquê morrer connosco preso ao chão
se filho de Deus és? – Mas se eu não for –

diz, de olhos sem raízes, o modelo
– que vos garante então quem serei eu?
.

Monday, April 21, 2014

Os Amigos


éramos cerca de dez vinte olhos
e os nossos vinte anos tardios
na mira da ansiosa fidelidade
de onde saudosa a violência
da inumada adolescência
brota.

portanto a minha felicidade:
na porta a cortina de missangas
azulava o corredor coando
límpida a claridade e os tacos
de verniz refletindo arrit-
métricos a avidez dos amigos
toldados de embriaguez,
gesticulavam

e as vozes oh
as vozes varrendo
pelo soalho as vozes e as ideias
velozes cheias e a lividez da alvorada
e os projectos avulsos de um futuro
e a espessura do tabaco chupado
com fervor exacerbado de quem
na verdade de um instante sempre
cria:
a luz ora galgando o céu
e a luz remanescendo agora
com rubor dissemelhante
.

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