Saturday, December 31, 2016

Um Castelo de Sonetos (1 e 2)

1.
Quereres-me outra vez? Se for, será
para aquecer os pés, como dizíamos
quando outrora a ambos atraíra
desmanchar a beleza. Trauteáramos

a canção, marcando jogos futuros
quando we get older, losing our
hair, o que era bom, não fosse o besouro
ferrar nos corpos estragos prematuros

e rasgos de desejo imprudentes;
já faltou mais para os 64
e pode ser que nada sinta vendo-

-te hoje deslizar no vidro fráctil
em frente ao que há-de ser e delibero
que fiques só comigo mas não espero.

2.
Que fiques só comigo? não espero
esmola ou mentira, é altamente
idealista e pouco inteligente;
eu, deste lado da Flor do Império

aonde talvez finjas não me ver
impávida me quedo, sou mordaz
e fria aguardo a chuva contumaz
cessando de repente de tremer.

Incrível o que o tempo te sulcou:
um desses magros que ficam grisalhos
na barriga, tratando assunto sério

na máquina do banco. Tudo solto
o nosso ex-amor — de inolvidável

já nada nem de ti e outros quero.

Saturday, November 26, 2016

I heard a Fly buzz — (Emily Dickinson)

Zumbiu a Varejeira – quando morri
Nesse sereno Quarto
Como sereno é o Ar
Entre os Capelos do Mar —

Enxutos os Cabos — dos Olhos em roda
E suspensos os Fôlegos
Para o último Ato — entrado
Entre os mais — o Rei no Quarto —

Doei minhas Lembranças — assinei
O que de mim se usa
Em Rubrica – e nisto meteu-se
A Varejeira intrusa

Zumbindo azul ­— incerta — instante
Entre eu e a Luz — a estremecer —
Cessando as Janelas então — e eu
Não pude ver para ver —

Sunday, November 06, 2016

Obra Poética Completa (ensaio)


Por demais requintado esse livro
em que investimos: teus monstros, minhas
rimas, teus senhores, minha esgrima
em desmedida admiração. O crivo

da sintaxe que transpõe: tuas penas
longilíneas meus cerrados cílios
teus leitos de dossel meus idílios
teus zeppelins carregados de oferendas

meus cinemascopes desejantes
teus membros de volutas minhas garras
de pavor tuas brumas mendigantes

tua cósmica burguesa. Espanto de
ambos: o que estoura não quebranta
o resto entre nós foram só farras.


Tuesday, July 05, 2016

Pico



Era ali sem aviso em êxtase
que alguma poesia começa

mas dei o flanco não aguento —
vertigem ao rés da promessa

medindo mais que o lance: inóspito
panorama absoluto ao topo
do globo.
Escala de demónios
que os intrépidos ignoram.

Mas eu só sei de trechos, filmes,
fotos. Idealizei subir
e subi e nada vi. Estive
estarrecida pela descida

(óxido férreo, bagacina
precipitando a colina, eu
paradoxalizada em face
a como passar) vazio
e céu

Larguei em minha frente as filhas

covarde lassa impreparada
sem coluna dorsal, nada
seguindo a trilha de barriga
de gatas de rojo nas rochas réptil


no poço do firmamento, ridícula

Friday, June 10, 2016

Laços de Família

Não há nada seguro que eu não incline.
Pelo que temos de gato não se espere
mudar-me o canto. Não que eu queira.
Troco a ordem do mundo por rotina

minha. Também te acontece às vezes?
Agir do avesso para ser-se aceite,
marcar o sofá onde outros se deitam.
Nós — os mesmos pais e dois países

irmãos mal adaptados à corrente
das mil líquidas léguas da infância
onde, por regra, um de nós se lembra

do que o outro desmente. Não o sangue
senão predadora coisa congénita


que dobra como coice e nos distende.
No passado ossos, ao futuro as peles.

Thursday, May 19, 2016

As I Lie Dying



as minhas mãos vão ficar dormentes

e logo cessará o sopro. É líquido

o ar zumbe e um susto paralítico

nos cobre dum lençol turvo recente



calado o rouco corpo rijo e tudo

o mais quieto tudo tão decente

de cera o rosto tristes os parentes

urdida ardência pressentido absurdo



o rumo — tema tantas vezes tétrico

a tentar a escrita o hiato disto

e a luz efervescente além do atrito



onde não morre verme não se extingue

fogo. Na hora esperarei seguir

ansiosa no redor de pó e éter

Monday, May 16, 2016

Marinha

E depois é preciso chamar os amigos
para soprar os versos todos mas há dias
tantos que nenhum nos visita. Ligamos-lhes
ou não lhes ligamos estão fora noutras tarefas.

Separarmo-nos de quem fomos não tem
mal, enganarmo-nos de longe também
não será o caso. Críamo-nos as filhas,
trocámos cartas de madrinhas de guerra.

Eu esqueci-em de como engatilhar a bomba
no dia em que bebemos muito além da conta.
Lembras-te. Dos enjoos do mar à tareia
na tua juventude zangada? Do tempo

em que temíamos mais que nos descobrissem
a celulite do que as manhas? Das tenazes
façanhas — durmo sozinha no relento —
que nos trouxeram aqui pouco mais ou menos

firmes peladas enxutas e em excesso?
E do mar nos cabos soltos e o grande vento
o chicote nas velas e dentro treva era
e não era nada deste estilo, os versos

se vierem que liguem serão líquidos

Sunday, May 15, 2016

Carlos


A tua bicicleta é o terreno que os locais cultivam nas traseiras
As traseiras da tua casa dão para uma barreira clara
A casa acolhe em novembro as pinhas no fogão em maio as papoilas e a época inteira uma promessa de mar
As pinhas estão entre a terra e o fogo as papoilas cozem sementes que são escuras e curtas entre o feno que se ceifa no verão a foice está entre a morte e o pão o mar está entre a barra pintada aos pés da casa e o céu
O céu tem carradas de espécies de aves entre si e a lagoa
A lagoa borrifa os arrozais onde descem as aves e alguns gatos bravos espantam as traças
As traças são catalogadas com nomes por curiosos de frontais e máquinas fotográficas
As fotografias não fazem justiça à noite entre as traças e as estrelas
As estrelas são escorraçadas pelos frontais que atraem as traças
Tudo isto é circular e há ainda melgas aos milhares que mordem os clientes que não sabem que o sol cai com vingança no terraço entre o peixe no churrasco e a comida da Maria
A Maria faz muitas horas na cozinha entre o cheiro a migas fritas e as arrelias entre o dono e as travessas que a filha serve com arroz refogado entre os coentros e o caldo dentro das côdeas do pão de cabeça
A cabeça quer ser clara como a barreira atrás da casa
A barreira da casa é a norte o vale a sul o sol a nascente o mar a poente
O Melidense fica mais à frente na aldeia de quem sai para as praias
A praia que tu preferes são sete quilómetros a pedalar na bicicleta e além dos arrozais há dunas de grosseira areia onde passam só pescadores e tu entre os cardos as camarinhas e as acácias rasteiras depois das piteiras e dos alemães e dos caçadores e dos seus cães
Há um marco geodésico que é o teu destino e os cães atrás da bicicleta são um susto a aborrecer-te a solidão desde que passaste o cemitério o vale e as areias com os traços de jipes e cavalos e os pacotes e garrafas que acumula o tempo quase tudo tão deserto e quase muito pleno
Do deserto vês o mar e penetras primeiro os pés e o tronco depois do sexo a cabeça atrás e aí o roxo som a mansa trepideira das ondas e das rodas e até o latir imprevisto em cima do destino e entre o salitre e o feno e entre a morte e o pão e a natureza toda a morder-te a atenção até o sono quando a luz declina faz-te falta por terreno

Saturday, April 30, 2016

400 anos da morte de Shakespeare


Coração-martelo, caixão-pregos, paixão-fraude.
Shakespeare morreu em Maio há quatrocentos anos
e escreveu “as alegrias extremas têm fins extremos”
e lavrou com pena o óbito do amor romântico.
Desde aí montes de amantes são estudos de caso
nos centros de investigação do ocidente, mulheres e homens
a ser manuseados pela nuca, a devorar-se mutuamente
e às trevas — com que dificuldade se reconhecem no flúor
de faróis, ecrãs, salões vazios de escritórios e hotéis
— vasculham-nos, arrumando pela madrugada, os silenciosos
azuis, que têm sonhos mais magros que salários.

Peço de ti o que não te ocorre perguntar e tenho
para te apontar este mundo cheio de lapsos, é certo.
O mundo está cheio de mortos que não chegam
a cair, o mundo está cheio de mortos que são vivos
com pouca sede, o mundo está cheio de jovens
que escorregam em sonos sólidos de dois dias e ressuscitam
ao terceiro sem redenção sem ninguém que lhes verifique
o pulso ou o que tomaram ou lhes deram em excesso.
Peço de ti desculpa e compreensão pelas tantas deceções
que mal estanca o garrote da maturidade, descobrirás

um dia o que não podes remediar. O mundo está cheio
de adultos sem separáveis de soluções e cambaleiam
por cima das ondas sobre longas falhas tectónicas,
o mundo está cheio de apáticos convulsos, de terremotos
domésticos, de torpedos em casas de repouso, de sítios pitorescos
obliterados da cartografia onde havia piscinas e praças e
gelados e matinés de domingo, havia cruzamentos e esquinas
e olhos brancos vagabundos voltados para cima. O mundo
está cheio de arames e grandes migrações para lugares piores,
está pejado de bolores que se inoculam em desgraçados
e não saram mas disparam os índices das publicações
científicas e, assim, saberás um dia o que não te ocorre

perguntar — de que acidentalmente virás a achar
cambiantes. O mundo está cheio de revoltos que são
mansos ambivalentes e desenrolam rolos negros
de linóleo onde nada se pode ler; cobrem com eles
minas das guerras de todos os pais e rejeitam pacientes
dotes milenares de insensatez e resolvem que lhes resta
traçar movimentos de dança contra o precário amparo
de haver chão onde cair. Peço de ti justiça e vulnerablidade
com desconhecimento do medo, resiste a que te instruam
teorias da conspiração, aspira à imaginação total
dos outros, à distração que impele o turista à coragem,

pensamento mágico quanto baste, filha, espero acharás
coincidentemente: que a tua existência resultou em parte
do encontro de intensidades; ter havido absolutos
e aflições, ajustes de colisões, juras retocadas, memórias
readmitidas, sequências interrompidas, correspondências
de afetuoso pormenor. Desejo-te não menos e tudo
mais: o tipo de humor capaz de acusar e relevar,
o esquecimento que se destrinça da indiferença e nos dá
deslumbrarem-nos coisas que passam sem anterior recordação,
solicitude, curiosidade, o filtro amoroso
doce se possível na mínima diluição
.

Saturday, April 02, 2016

Tarefa de Tradutores


No lábil osso da língua

o nosso exílio se esculpe,

onerosa letra adúltera

contra o juízo público

e a imaginação pobre

num romance de Hawthorne.

A nós não buscam tochas:

o desconforto enrosca-nos

e a gente só se comove

aqui (que ninguém nos ouve)

Wednesday, January 13, 2016

Avô Amaro


Quando o homem pisou a lua no café do meu avô

eu não estava lá [escrevi sobre isto antes por outra

causa mas (montagem, conspiração, solas ufanas de improváveis

galochas de lustro astronómico arrastando um pé retocado

pelo ângulo do vento bafejando ouro azul rubro e branco

e pura Americana forever) nem sempre há-de ser o mesmo

poema; neste o tema serve o desenho de quem era o meu avô:

ele tinha um café e um televisor ainda raro na altura, caixa

cúbica que todos convocou em torno ao espaço, só eu não;

eu era ainda para nascer e por isso lamento quando chegou

o primeiro homem à lua eu não estava lá] em Vendas Novas



e o café ficava em frente ao quartel e os mancebos

treinavam para ir matar no ultramar por causa do senhor

que julgava ainda governar Portugal mas também não esteve

lá e se calhar nem viu nada se calhar nem ouviu se calhar

nem deu por nada mesmo supondo um rouco transístor

seguro pela débil mão junto ao débil coração o enfermo

na cadeira de onde já tinha caído sem ter percebido

nada desconhecendo os mancebos e estes em paga

ignorando por uma vez tudo dele todos olhos e reparo

todos postos no futuro todos sôfregos na respiração

de Neil Amrstrong lá longe na lua na televisão do Amaro



preto no branco o dominó em tampo de mármore em câmara

lenta derrubado passado tempo guerra regime ó leve coração

efémero o meu avô no meio do café a serradura era neve

de botas cardadas na lua que ele limpou quando voltou

a tropa ao quartel de fantasia em forma ele só atencioso

ele desperto afã de cuidar de varrer como sempre fazia

ele pepitas semi-acesas eram estrelas fabulosas da alegria

eu não estava lá nem estive quando anos após (eu tinha

dezoito) o coração dele parou eu soube como um soco

a primeira vez que alguém morria a lua não tremeu não se via

o meu avô pela sua fé sem qualquer tecnologia tornou ao céu



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