Wednesday, December 31, 2008

eu sabia que já tinha lido uma coisa parecida

"A Avenida Almirante Reis, eternamente cinzenta, pluviosa e triste ao sol de Julho, balizada alternadamente por ardinas e inválidos, trotava na direcção do Tejo entre duas gengivas de prédios cariados, como um cavalheiro apertado em sapatos novos para a paragem do eléctrico. Industriais de olho alerta impingiam relógios de contrabando nas esplanadas a que os engraxadores, acocorados em penicos de tábuas, conferiam uma dimensão insólita de creche. Em cafés gigantescos como piscinas vazias desempregados solitários aguardavam o Juízo Derradeiro em frente de galões imemoriais e de torradas terciárias, congelados em atitudes de espera. Salões de cabeleireiro habitados de baratas propunham às donas de casa em mal de imaginação soluções capilares imprevistas, a que retrosarias poeirentas dariam o toque final de soutiens de renda, mosquiteiros torácicos capazes de rejuvenescerem de erecções formidáveis vinte e cinco anos de resignação conjugal."

António Lobo Antunes, Memória de Elefante
.

Tuesday, December 30, 2008

Almirante Reis

A nossa solidão é esta avenida decotada,
do passeio do acaso, do furtivo e escancarado,
artéria tantas vezes paralela ao coração,
onde ninguém serve a nenhuma arquitectura;
onde sobe a miséria do terminal do eléctrico
até à igreja fronteira à sopa dos pobres,
temporárias sentinelas armando cartões
nas fachadas das lojas, trastes e artigos
de ocasião (apanham-nos de dia noivos
investindo num projecto de família).

O nosso é este meio de solidão, que se carrega
de qualquer coisa que não é bem perpétua
atmosfera de névoa, nem sujidade, que também
é terna, pena suspensa (corvos de Lisboa, naus
gastas no chão), saudade, por que não, sentimento
de povo sem pátria em que descreio; crer
creio
nisto que na indigência e vício coexiste a gente
dá-se e da carência faz-se uma disciplina às claras
e por muito pouco desprende-se quase nada
que se tem
.

Monday, December 29, 2008

ODES de Ana Salomé (Canto Escuro, 2008)

a uma existência de papel

e eis que é chegado o fim
como uma pedra que se suspendeu
e depois pousou no chão vencida
vencida pelo cansaço de querer mais
do que uma simples pedra pode querer
esta pedra, que josé ferreira gomes conhecia,
que ele próprio atirou contra a noite e o dia
no jardim que era, afinal, todos os jardins
que ele próprio comeu, depois do pódio do chão,
como uma sombra demasiado sombria
que ele próprio supôs como a palavra.
e eis que me dou conta que existo rodeada
de palavras e de pedras caídas - ou anjos em
falência.
não sou homem, e a uma mulher é mais difícil
viver só com as palavras. e quando digo só é só que digo.
esta vida a meio-gás, o JL no braço,
a mesa na esplanada de inverno e o cigarro, até esse,
a apagar-se até ao desnorte.
todo este frio de olhar em volta
e não ver a estrela nem a graça
de não ter uma única casa - uma única casa - branca
nas ruas desta ferida.
de olhar em volta, o centro comercial - o centro,
como esta palavra poderia ser bela - a trazer-me
os outros como uma paisagem sobre as folhas do jornal.
no centro comercial há tantos casais
que se amam como um padrão de pombos - ali, agora mesmo, um homem de bigode
e uma mulher de seios descaídos -
também os seios caem como as pedras suspensas - também os seios -
amam-se com a facilidade com que viro
as páginas do jornal e abandono os temas desisteressantes.
meu deus, faz com que eu tenha os seios descaídos
e dá-me um homem de bigode que me leve a passear no centro comercial.
não quero um amor maior do que o amor possível,
a lição dos livros - esta inqueitação - esta grande inquietação -
cansei-me de amar rodeada de palavras
e de vento e de nada
alguém que não vem mais.
levanto-me da mesa do café,
puxo a gola do casaco para cima,
prendo o cabelo
e vou para onde não sei.

Ana Salomé

Sunday, December 21, 2008

Saudando a luz que se alonga



Augusto de Campos, "Sol de Maiakóvski" (1980-1993)

Wednesday, December 17, 2008

O raio do pombo

já chocou três vezes, hoje, contra a minha janela. O gato está há horas de bigodes afiados e focinho húmido colado ao vidro. Só por causa disto, até deixo aqui um inédito que eu acho que é do Fradique Mendes - quem quiser confirmar, vá ao espólio de Jaime Batalha Reis, na Biblioteca Nacional, caixa 55, documentos 15.2 e 15.3. Entre parêntesis rectos, coisas que não se percebem bem na caligrafia. Podem comparar à vontade com o Corvo do Poe. Ou com o Gato Preto. A mim não me rala nada. Sou só um bocadinho supersticiosa.

Quando virem minha pomba pelos campos pela eira
Negra, negra como um corvo azulada e luzidia
Não lhe atirem, não a matem, não a prendam que seria
Para mim ficar dormindo sem a minha companheira.

Há três anos e três dias que eu com ela vivo só
Há três anos e três dias que indo ver nascer o Sol
Ao findar duma elegia do nocturno rouxinol
Uma pomba na janela veio olhar-me a mim com dó.

Eu não sei se foi tristeza se prazer o que senti
Sei que os olhos negros tristes, compassivos, dolorosos
Ao fixarem-se nos meus doloridos lacrimosos
Me lembraram as saudades dum passado que perdi.

Costumava eu pela noite na janela do nascente
Esperar que a luz viesse colorir de azul o Céu
De maneira que no dia em que a pomba m’apareceu
Cuidei ser da noite a imagem junto a mim sempre presente.

Desde então que a pomba negra nunca mais, na natureza
[Sombra vã duma] saudade me deixou um só instante
[Vai às vezes] pelos campos a voar sinistra errante
Para vir junto da casa considerar-me com tristeza.

Monday, December 15, 2008

Solicitações

Por enquanto não custa praticar o limbo
e ficar quase num estado larvar assim
nem em alto nem em baixo
como tão cândido escreveste
com erros ortográficos que guardo para mim
e me fazem lembrar que não és rei de Ítaca
e talvez nem voltes cá, também

me fazem lembrar quando me chamas brava
embora agora não ouça:
para estar suspensa é preciso não usar os sentidos,
especialmente os da cabeça
que são eles que avisam quando é tempo de doerem os músculos
e de os membros inferiores terem formigueiros
e de ser preciso correr sangue antes de se porem roxos,

mas por enquanto não custa;
é tão agradável, desde que não pense muito
qual de nós vai ser primeiro a ficar frouxo
e cada noite faço versos para não ter outros
compromissos além de urdir o nosso enlace.
Se fosse hoje Penélope também
preferia dormir com barbitúricos
.

Sunday, December 14, 2008

Uma falha no programa

Estou à espera mais uma vez
de ser gentilmente votada
ao meu lugar de amante
intensa, grata e gozada
e é melhor que fique assim,

nem me queixo, inconveniente
sou para todo o protocolo
e além disso algo demente;
tenha embora certo interesse
falta-me um tudo-nada, charme

e desprendimento – aliás,
agradeço que entre portas
me deixem dedicar mil vezes,
no meio dos uivos e lodos,
a minha vulnerabilidade –

– mas se por acaso, só desta,
for mesmo da minha cabeça
e acontecer de outro modo,
fico de tal forma contente
que hei-de agradar-vos a todos
.

Para não enganar ninguém

NegritoAqui
uma crítica severa e provavelmente certeira às traduções de Daniel Ladinksy que tenho vindo a utilizar e também a alterar. Embora reste a hipótese de neste caso - só neste - o excesso de zelo ser contraproducente para o trabalho de amor, e de se calhar não devermos mesmo ser assim tão religiosos
.

Saturday, December 13, 2008

Hafiz (em loop)

PEQUENINOS DEUSES

Dizem alguns deuses, os pequeninos,
“Eu não estou aqui, nos teus lábios vibrantes, húmidos
Que precisam de banhar-se sobre
A praia dourada de um
Corpo nu.”

Dizem alguns deuses, “Eu não sou
O anseio em ferida da alma não correspondida;
Eu não sou a face afogueada
De cada estrela e
Planeta –

Eu não sou o Regente aprovador
Dessas secreções preciosas que podem destilar
Todo o espírito numa jóia perfeita e cintilante, nem que por
Um só instante;
Nem resido em cada monte de estrume quente e doce
Que brota da gratuitidade
Da Terra.”

Dizem alguns deuses, os que temos de enforcar,
“A tua boca não foi feita para conhecer a Sua,
O amor não nasceu para consumir
Os reinos
Luminosos.”

Meus queridos,
Cuidado com esses deuses que os homens assustados
Criam

Para trazer consolo e anestesia
Aos seus tristes
Dias.

*

UMA NECESSIDADE PREMENTE

Por

Uma necessidade premente

Estamos de mãos dadas

E escalamos.

Não amar é largar.

Ouçam,

Por aqui o terreno

É demasiado

Movediço

Para isso.

*

DOIS CHARCOS À CONVERSA

Choveu durante a noite
E formaram-se dois charcos no escuro
E puseram-se à conversa.
Disse um,

“É tão agradável estar finalmente nesta terra,
E encontrar-te também,

Mas o que irá acontecer quando
O Sol resplandecente vier
E nos transformar outra vez em espírito?”

Meus queridos,
Aproveitem a noite o mais que puderem.

Para quê perturbar o coração com o voo,
Quando ainda agora chegaram
E o coração se vos aquece com tamanhos desejos.
E olhem:

Tantos prados de pêlos macios plantados
Sobre vós.

Para quê perturbarem-se com Deus
Quando Ele se abstém de julgar
E é tão gentil

A menos que sejam santos e íntimos
Do círculo
Do Perfeito Um?

*

AS GRANDES RELIGIÕES

As
Grandes Religiões são os
Navios,

Os Poetas os botes
De salvação

Todas as pessoas sãs que conheço saltaram
Borda fora.

Isso é bom para o negócio, não
Hafiz?

*

PEPINOS E PRECES

Todo o dia
A terra brada
“Ui, obrigada.”

Um ui tão exuberante
Que começa a atirar
Coisas.

Como se Deus passasse num desfile a incentivar
Os arruaceiros
Com aquele tão lindo aspecto –
Que atrai como mel uma avalanche inteira de maníacos!

Gosto desta ideia de atirar coisas a Deus
E especialmente – o fazer de nós arruaceiros!

Portanto, assim que salto da cama
Começo a encher grandes sacos
Com sapatos velhos, pepinos
E
Preces

Para o próximo
Evento de consagração

Aberto-a-todos
E sabe Deus
A que mais.

*

OS LINDOS JOGOS DO AMOR

Dizem sensatamente os jovens amantes,

“Vamos experimentar este ângulo,
Talvez suceda algo de maravilhoso,

Talvez três sóis e duas luas
Rolem
De um esconderijo no corpo
Que a nossa paixão ainda tem de acender.”

Dizem os velhos amantes,
“Podemos fazer mais uma vez,
Que tal desta longitude
E latitude –

Balouçando de uma corda atada ao tecto,

Talvez uma parte de Deus
Se esconda ainda num canto do nosso coração
Que o nosso afecto ainda tem de revelar.”

Conclusão:

Não deixem nunca de brincar
A estes lindos
Jogos
Do Amor.

*

OS SUBÚRBIOS

Só nos podemos
Queixar

Quando vivemos nos subúrbios
De Deus.

*

ÀS VEZES DIGO A UM POEMA

Às vezes digo a um poema,

“Agora não,
Não vês que estou a tomar banho!”

Mas o poema normalmente não quer saber
E replica,

“Paciência, Hafiz,
Nada de preguiça –

Prometeste a Deus que davas uma ajuda

E Ele acaba de inventar
Esta nova canção.”

Às vezes digo a um poema,

“Não tenho forças
Para espremer mais uma gota
Do Sol.”

E não é raro o poema
Responder

Subindo para a mesa de um bar;

Depois, levanta a saia, pisca o olho,
Fazendo com que todo o céu
Desabe.

*

DEIXA LÁ A RELIGIÃO

O que é que
Os tristes têm
Em comum?

Parece que
Ergueram um altar
Ao passado.

E vão lá muitas vezes,
E fazem um estranho lamento e
Culto.

Onde começa a
Felicidade?

Onde deixamos
De ser assim

Tão

Religiosos.

*

PROCURAR MELHOR EMPREGO

Se já

Está provado

Que tamanha

preocupação

É negócio

Que não rende,

Porque

Não

Procurar

Melhor

Emprego?

*

IMAGINO QUE AGORA POR MUITO TEMPO

Aconteceu
Outra vez
Ontem
À Noite:

O Amor
Rebentou a rolha de si mesmo –
Espalhou os meus miolos
Pelo
Céu.

Imagino que agora por muito tempo
Algo de mim
Há-de parecer

Que cai como
Estrelas.

Hafiz (um excerto)

O medo é o quarto mais ordinário da casa.
Eu gostava que vivesses em melhores condições
.

Thursday, December 11, 2008

Põe-se a vida

Onde
Deus deita Seu olho
Põe-se a vida
A aplaudir.

Inúmeras
Criaturas pegam nos instrumentos
E juntam-se à
Canção

Onde amor se faz conhecer
Contra outro
Corpo

Põe-se
A jóia no olho
A

Dançar.

Hafiz (c. 1320-1389) – tradução indirecta e liberta a partir de Daniel Ladinsky, The Gift, Penguin Compass, Nova Iorque, 1999

Saturday, December 06, 2008

Ainda amor me alui, friável carapaça

A mim que me cuidava há muito tempo seca
Ó tão íntima bênção – que a não esqueça
E a conserve – após o acto claro, após
O imenso espanto exacto, me fecunde

Esta miséria funda, e assim desfeita,
Guardando, grata, o quanto ampla fui

Que faço só poema onde haja dentro carne
E corpos prefiro que cubram como casas
Melhor ainda tendas, asilos fugazes
Um ou dois furos, ventos, humidade, dádivas
.

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