Sunday, August 21, 2011

Porque já era tempo de desempoeirar a xafarica


Amtrak


Somando tudo já dei um par de vezes a volta
ao mundo agora outra vez enamorada outra vez
desengomada e tão de veludo e tensa e tenra
e outra vez um muito semelhante cansaço de urgência
impossível não comparar este relato de me deslocar
até ti com um poema de amor de há dezasseis anos
escrito em turbilhão e certeza onde maldizia
de avaro e com que ironia hoje o tempo

e pensar isto é pensar que muito se medita mas já se prevê
que não é desta que termina a correria
é Outono
outra estação outro país outra idade tu
falas outra língua tens a pele anilada
que herdaste de pais que vieram da Índia
e esta carruagem que me leva já vem do Canadá há
o Hudson que bordeja em serpentina sem eucaliptos nem igrejas
desta vez como num sonho crepitante há
folhas de ácer lembrando nos três dedos
patas de asas curtidas em peles secas e ocres e rugiriam
se pisadas
embora condiga a paisagem com mais doces imagens
de resto que perfeito isto até o frio
cá dentro não se sente e coa-se o ocaso
e eu deslizo para ti e um outro continente há
tantas horas viajo que quase tudo esqueci
menos o quanto abençoadamente
menos esta ternura coberta de fadiga
mesmo se suspeite
que sub-reptícia mova a vertigem e o impossível não dure

e de repente tenho vinte e um anos outra vez há
pouco tempo sou outra vez maior
visto que chego esta noite e tudo indica que faremos amor
voei sobre a água até ti suporto este atrito até ti
devoro as copas do ácer no Outono para me deitar junto de ti
contanto desta vez adivinhe – ou já percebi –
que são lindas promessas mas dificilmente nos perseguimos
até ao fim sequer a nós próprios porque a viagem
tem esta coisa de nos provar que já não somos o que fomos

e porque haveríamos de ser separados de vidas anteriores
e colocados em lados contrários do globo
– amor que tudo move como iludes na verdade –
quero perscrutar pelo grande vidro deste vagão
a noite e descubro o meu reflexo sedentário
mas já não sou quem podia não ter usado o bilhete
na bifurcação além deixei-o para trás
e se compreendo o que antigamente era é
agora à luz da América e de ti
amor com desenlace iminente
e de todos os registos e testemunhos e gritos
de vidas por esse exigente caminho fora
sem tréguas mas com contemplações
se compreendo isto é porque compreendo dizia talvez
o tempo aqui por esta faísca em frente no espaço:
é preciso contar ao pormenor e repetidamente
o que vivemos e por que ansiámos e onde chegámos
pois é na medida em que nos movemos que mudamos
e basta deslocarmo-nos para divergirmos tu
soubeste antes de mim –  evidência que me surge com algum choque –
quando voltaste para aí depois da proposta que foste fazer-me
onde eu estava tiraste-me de lá amor
e respiraste-me ao ouvido Vai
fazendo com isso logo com que um pouco eu te perdesse
e será assim para sempre repetir constantemente por onde passámos
quem foram os nossos pais e quem julga neste momento
Vossa Majestade que eu sou quem não seremos jamais eu
envelheço falta-me a mão
para escrever e para errar quanto mais viver
importa portanto esta noite ir-te amar

vá o pensamento com o movimento e o cansaço
e algum frio que se levantou desde há bocado
não haja aspereza de palavras ou pedidos se
o que escrevo a cada quadrado de janela não fica se
modifica e passa se
expira a intensidade e o vazio a agarra – tanto
mais acerbo quanto ela for real – insisto
por ti por amor que me movi
em quatro sentidos seja total
a graça à noite

e nós no final
um pouco após a luz ainda unidos
.

Thursday, February 10, 2011

Medeia


[Lugar baixo, rancor surdo, tremenda
raiva – o despeito da mulher
ao centro e o sensato coro atrás.]








Diz-se que matou o próprio irmão,
que descende do Sol e solo bárbaro,
e que, deslumbrada por jovem prático
e pouco espiritual, lhe deu
um animal de lã dourada. Ele
porém ainda quis um trono, outro
matrimónio e o mando dum país.

Quando uma feiticeira chora invoca
demónios que invocam malefícios.
O escritor, atento ao móbil, fixa
os joelhos da semideusa mágica
e empático pinta-lhe na boca
a palavra trágica: eu nada quis
para mim, por ti só tudo fiz.

E o mundo  entretém no seu decurso
o público. Do crime participa
quem dele tira prémio ou espanto –
E o pranto corre a cada livre gesto
e o excesso com que sofre nos consola
o sobressalto. E o manto que tece
sufoca em chamas e excita deveras
o sangue a correr e a carne a arder.

Resta um par de cadáveres infantis
aos pés do pai: o céu está vazio
e ninguém saiu ainda da sala.
Para concluir o acto o génio
declara solene que ali se ama
e mata sobre a cena. Não mais
discursos. Inclina-se e repousa

a pena com a ponta de veneno.

Blog Archive

Contributors