Friday, October 30, 2020

[na cabeça do sonho:] da sabotagem sentimental

 Ela decapitava-se das fotografias que não a favoreciam. Ela queixava-se de não aparecer naquelas onde eu estava feliz. Eu colava uma cabeça dela na fotografia do meu casamento. Os convidados não percebiam, eram duma espécie que gostava de si.

Wednesday, October 28, 2020

Fábula, de Rui Costa


Não mãos deste último homem

em que firmei exaltação e prodígios 

de onde obtive música e depois silêncio

e com quem passamos a vau a névoa

depositei o teu livro póstumo, ele

abriu-o em voz alta e tu cantaste

uma fábula que nos contava:

o sermos na noite o que o dia

mal aguenta porém persegue;

e as cobertas e os céus e as vozes

não serem exatamente corpos circulares

como tantas vezes supomos às voltas

do que fomos — esse campo resistindo —

antes parábolas testadas pelo tempo

também cordas elásticas em mira ao 

que traçaste muito lá atrás ao ponto

onde a noite e o dia se transformam

e atingem às vezes diferente espectro

de flutuante fogo – e se te sentimos

apesar de não podermos garanti-lo —

folga para nós

um pouco o batente do horizonte.

Tuesday, October 20, 2020

Trans-somática

 De que carne cá dentro vem

aquilo que em mim tenta e pode

escrever o que estou lendo 

de outrem?

Não propriamente posse – 

antes uma disposição

que internamente se impõe:

o corpo inteiramente votado 

ao trânsito dum longo transe.

 

Não sei de que mais me envolva

tantas horas – nem dos distúrbios

do amor e respetivo sexo.

 

Cúpida presa mira longe texto.

 

Correntes desenrolam-me outra

coisa que não seca, conquanto

subam e desçam, carrossel

esconso, áspero silvado

ora escarpa, ora dossel

fluvial, Ó quanta líbido 

discípulos da vertigem (à

falta de mais certeiro nome —

sanguíneo pneuma?) pode

trasladar a carne o canhão

para a fome espiritual?

Monday, October 12, 2020

Trabalhar sem Esperança

 S. T. Coleridge

Versos compostos a 21 de fevereiro de 1827


Dir-se-ia a natureza toda trabalhar: espreitam da toca 

As lesmas, zumbem as abelhas, esvoaçam aves no ar, 

E o Inverno, fazendo a sesta a campo aberto,

A fronte radiosa exibe, sonhando a Primavera! 

Sou eu, no entretanto, a única coisa ociosa

Que não faz mel, nem poda, nem constrói, nem canta.

 

Porém, sei bem dos bancos onde sopram amarantos,

Sondei a fonte de onde fluem rios de néctar. 

Ó folhosos amarantos, por quem brotais, 

Se por mim não floresceis? Correis, ribeiros abundantes, 

Longe de mim. De lívidos lábios, cabeça sem coroa, 

Me passeio: e sabeis que pena a alma me atordoa?

Trabalhar sem esperança é peneira que reduz o néctar. 

E a esperança sem objeto não vive nem produz. 

Thursday, October 08, 2020

Flor de Laranjeira


Não é da lua, estou-te a dizer.
São estas flores
a iluminar o quintal.

Detesto-as.
Detesto-as como detesto sexo,
a boca do homem
a selar-me a boca, o corpo
paralisante do homem –

e o grito que sempre escapa,
esse axioma de união
baixo, humilhante –

Na minha cabeça esta noite
ouço a pergunta e a resposta que se segue
fundindo-se num som
que sobe e sobe e depois
se separa nos antigos eus,
bacocos antagonismos. Já vês?
Tomaram-nos por lorpas.
E o cheiro da flor de laranjeira
flutua pela janela.

Como terei repouso?
Como me contentar?
quando ainda há
esse odor no mundo?

                               Sr.ª Glück, encore!

Erva-de-bruxa

Uma coisa 

malvinda aparece no mundo

a clamar desordem, desordem –

 

Se me odeias assim tanto

não te incomodes a dar-me

nome: ou precisas

de mais um insulto 

na tua língua, outra

forma de culpabilizar

uma tribo por tudo –

 

como sabemos ambos,

quando se adora

um deus, é só preciso

Um inimigo –

 

Eu não sou o inimigo.

Apenas um esquema para tapar

o que vês a acontecer

aqui nesta cama de terra,

um pequeno paradigma

de falhar. Uma das tuas flores preciosas

morre aqui quase todos os dias

e tu não vais descansar até

atacares a causa, ou seja

tudo o que restar, tudo

o que por acaso vinga

mais do que a tua paixão pessoal —

 

Não era seu destino

durar para sempre no mundo real.

Mas para quê admiti-lo, se podes continuar 

a fazer o que sempre fazes,

a carpir e a culpabilizar,

as duas coisas sempre juntas.


Eu não preciso dos teus elogios

para sobreviver. Já aqui estava antes

de cá chegares, antes de alguma vez

teres plantado um jardim.

E aqui estarei quando só o sol e a lua

restarem, e o mar, e o campo aberto.

 

Eu formarei o campo.


      Louise Glück (viva!)

Wednesday, October 07, 2020

Aquém de Homero, a tradução sempre

 é ofício de navegação com cavalete 

à vista, diluídos excessos, deixando

pesos calculados por uma intuição

que se treina: uma cautela estatística

com singularidades, um deve-haver

de transportes entre o do outro e o nosso

uma praxis

 

dum futuro temporário: malabarizar 

os espíritos, revivificar uma fonte 

seca, reanimar barro cuja geração

em grande parte se perdeu, lavor

de homeopatia para um deus menor

e artesanato

 

de exposição permanente à falha, além

do ouvido para murmúrios e fífias

entre discursos escorreitos, pontaria

a uma voz anterior, a fantasia 

de decifrar, espécie de febril loucura

de melhor escutar, ou destapar

a visão antes das imagens, a escritura

ante-idiomas, pré-dilúvio, anúncio 

dentro da brecha, uma ambição megalómana

para tal vocação lateral, sucedânea,

desconfiançada, impura a milhas galácticas

do dito original

 

órfico indecente — esforço manco afinal

que não só desmancha línguas mas rasgos

humanos, alguns génios, face, em especial,

a reservas de hábitos feitos imaginários

e ainda 

 

assim

há que dar-lhe enquadramento profissional

organizado e bem pago como a tantos males

necessários.

Saturday, October 03, 2020

Soneto Preliminar

Esquissos de concertos, bailes de arrabaldes;

A rainha Margot num camafeu em roxo;

Náiades de esgoto, sorrindo deploráveis,

Nos galões de cerveja carpindo seu desgosto,

 

Cabarés brocados com videiras e hera,

O poeta Villon num cárcere prostrado,

Meu tormento suave, arenque calcinado,

O amor dum campino e duma lavradeira.

 

Sobre estes principais temas me debruço:

Medalhas em relevo, avulso bricabraque,

Esmaltes, pastéis, aguarelas, florais,

 

Ídolos de maus encantos, olhos fatais,

Camponeses de Brawer a beber de borco,

Ei-los. Querei-los? Vendo-os ao desbarato.

 

J.-K. Huysmans, Le Drageoir aux Épices, 1874

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