Friday, June 21, 2019

Feriado

ferida, isolamento, arranhões por forro
da pele, os órgãos cá dentro soltos
no varrimento da tristeza onde o norte
do vento, o comprimento ciclónico
da cabeça, o corte da respiração
de hálito adverso, destilado na cama
e cadeira aos pés a amaciar roupas
os cabelos os estofos os ocos quando

ao acordar não se recompôs o mundo se
foi a medo conduzindo o panda ao jardim
da estrela resvalando por zebras em frente
a pares de novos com carrinhos de filhos
cruzando-se com propósitos sólidos

e com tal talento de passear bebés
no parque sem dar parte do fracasso
da alma assoreada desta radical
falta de feitio e solução para tudo
com os olhos esforçados pousando
dali a três, quatro, máximo, anos
desviando o foco do vazio, da longa
comissão nos quartéis do frio


                     [acrescente-se acompanhamento musical por um poeta maior: ]

Tuesday, June 18, 2019

[na cabeça do sonho - a morte e o agente duplo]

Mateia e Viviane tinham uma nova filha pequena, uma mulata de cabelo roxo, eu gostava do afeto dela. Encontrávamo-nos por baixo de um arco, havia semelhanças com Óbidos. Davas-te bem com Mateia, tinhas voltado e eu recebia-te, desconfortável, temendo ainda o apoucamento que nos fazias quando estavas entornado. Algo como o eugenismo também tinha voltado, ou outra forma sinistra de crueldade contra a espécie seguinte. Íamos entrar na arena. À volta havia arcadas, algumas davam para caves que eram bares punk e era nelas que se ia espalhar o gás para matar. A primeira vítima chamava-se Luvínia Sette, tinha sido a minha melhor aluna, estava marcada. Onde? Como sabia eu estas coisas? Havia um lado para estar, qual? Não iria avisá-la de algo que podia ser rumor e, se não fosse, seria certo.

Monday, June 17, 2019

[na cabeça do sonho - torcidinho]

A minha filha andava com alguém que eu tinha namorado. Sem saber disso, ela estranhava que nós passássemos tanto tempo à conversa, quando eles deviam ir para casa fazer um filho. Ela tinha vinte anos e dizia que só havia mais dez para o assunto, era preciso que eles se despachassem. Os meus protestos que não, que somasse pelo menos o dobro desse tempo, e tanto à sua frente, não adiantavam, só a enervavam.

A amorosidade desalmada, o stress por antecipação (os exames do secundário instauraram o clima do terror), eu gaiteira sem ir para nova, o eufemismo da auto-depreciação, o quanto dilaceram instintos, esta febre de corrida, a sanha de farejar rivais ao ponto de atirar aos nossos.


Saturday, June 15, 2019

[na cabeça do sonho - passagem pela Índia]

Vamos então à Índia.

Encontramos uma casa entre o vale e o festival de dança, este com bancas aprumadas a lembrar os últimos arraiais. A casa já apareceu antes, mas em piores condições. Tem luzes acesas, mas ainda assim nos parece desabitada. Ocupamos uma cama enorme, somos uma família relativamente numerosa. Dormimos numa espécie de esteira de palha como coberta, para não abrir os lençóis.
No dia seguinte há um homem a cultivar a horta, julgamos ser o dono mas ele não se acusa, parece achar natural estarmos ali, diz coisas plácidas como: arranja-se sempre lugar para mais um. É afável, mas não posso ter por amigo o seu ar boçal.

Já a mulher, parece indiana. Pertence à casa mais à frente. Oferece-se para nos servir um verdadeiro jantar regional. À mesa somos cinco. Ela dispõe vários pratos delicados à vez, fico venerando-a como uma guru, ela traz grandes ensinamentos, tem um nome parecido com Kundalini, um nome preciso que esqueço.

E discutimos muito como retribuir. Se podemos dar-lhes algo de que tenham falta. Acabamos por levantar 200 euros para deixar num envelope. Odeio estes cifrões no poço do inconsciente. A fixação em acertar a fatura não honra a hospitalidade. Ao acordar, estou mesquinha.

Wednesday, June 12, 2019

Uma Clara Meia-Noite

É a tua hora, Alma, de debandares livre para o que não tem palavras,
Longe dos livros, longe da arte, esboroado o dia, finda a aula,
Emergindo toda em frente, muda, mirando, atenta aos temas que mais amas,
A noite, o sono, a morte e as estrelas.

Walt Whitman ("A Clear Midnight")

Tuesday, June 11, 2019

[Na cabeça do sonho - quase erótica]

Um amigo convidava-te a montar uma expo na sua escola. No local, era preciso esperar, talvez pagar 100 euros. Mas na secretaria entregavam-te a tenda, que tu e o amigo montavam na sala vazia. Talvez fosse uma instalação, afinal, com pernoita dos artistas. Ele abraçava-te e beijava-te lá dentro. Não sabia mal, Era amigo do teu noivo, conhecias a sua mulher. Dizias que achavas um flagelo social o foco na entrega sexual, afinal foco na posse, afinal não implicando mais intimidade que muitas outras aproximações entre pessoas. No entanto, parecia-te confuso, receavas que ele pusesse grande fé na mística da penetração. Ele dizia ah não, é só desarrolhar. 

Monday, June 10, 2019

Frases feitas sobre Agustina - agitar antes de consumir

Agustina foi pouco lida? Andei a tentar ver a história dos currículos de Português do ensino secundário. Se existe, não está lá muito acessível, embora se me afigure como matéria importante para os nossos historiadores de literatura portuguesa e estudiosos de educação nas Humanidades. Em todo o caso, quer-me parecer que Agustina fez parte de um conjunto de escritores relativamente contemporâneos (com Torga e Sophia e Sttau Monteiro) que entraram nos programas do secundário como consequência das renovações curriculares após o 25 de abril. Não sei ao certo quanto tempo foi A Sibila leitura obrigatória, mas palpito que pelo menos un quarto de século desde 1980. Pelo que percebo, Agustina pode ainda ser estudada hoje, tem Fanny Owen em alternativa, e há dois livros infanto-juvenis seus recomendados para o 2º e 3º ciclos. A grande maioria da população só terá lido o que lhe foi impingido - estou a ser otimista, talvez também paternalista, mas diria que Agustina levou aí algum avanço. Além de que as adaptações das suas obras ao cinema (mesmo que Manoel de Oliveira não seja de massas) e ao teatro (La Feria já será mais popular) terão ajudado a criar burburinho em torno do seu nome na hora da classe média fazer a sua compra da feira do livro ou adquirir prendas na Fnac.

Agustina foi destratada? Estive a consultar o palmarés e creio que Agustina ganhou todos os prémios possíveis a nível nacional e teve a sua quota parte de dignas homenagens e esforços para divulgação no estrangeiro.

Agustina foi esquecida? Além de Lobo Antunes, e Saramago quando era vivo e pouco depois de morrer, não me lembro de outro(a) romancista a aparecer com tanta regularidade com comentários, entrevistas, alusões na imprensa (hum, talvez Gonçalo M. Tavares). Nem nos dez anos últimos em que Agustina esteve retirada por enfermidade, a frequência foi assim tão menor (considerando que não houve propriamente novos originais).

Agustina é difícil? Aqui me retrato desde já, arrolando-me com a horda de publicanos que devia ficar caladinha por ainda não ter lido suficientemente Agustina. Li A Sibila e li O Concerto dos Flamengos. Quero ler mais. Concedo que a palavra esteja a ser usada no sentido de "difícil de engolir" e penso que Agustina é grande por ter a coragem de nos mostrar lados para que preferíamos não olhar.  Já em termos de linguagem, pela amostra, sendo um exemplo de escrever com exuberância e inteligência, Agustina não procurou a complexidade de uma Woolf ou o experimentalismo de um Faulkner (há uma parte de desejo de ser acessível à leitura pelos comuns mortais cultivados que é aliás bem apreciável nela, ao contrário dos mais herméticos), nem finta com as navalhadas tortas e ariscas de uma Maria Velho da Costa.

Agustina era a nossa grande romancista viva? Terá sido a primeira das grandes mas, sem desprimor, julgo que acabo de nomear uma que nos mereceria todo o reconhecimento enquanto ainda está entre nós, embora também ela, ao que sei, retirada e doente. Felizmente, até nem essa será a última das moicanas.

[Adenda: este post tem sido ligeiramente retocado, procurando a justiça com o que se sabe bom e se conhece mal.]

Tuesday, June 04, 2019

nova estação

sabes o estupor do mal, acreditas
em Deus mais que na inclusão já
que tantas vezes Deus parece não
incluir, tu mesmo entesouras cromos
de exceção; porém perfilhas Hegel
na fé, na ágora escolhes Kierkegaard
que esqueces, a quem voltas, fazes como
se, procuras, de fora, reunir
e cantas in extremis percorrendo 
o Tao para deixar e não agir

Monday, June 03, 2019

flausina afidalgada com o terreno nos seus termos

"... uma mancha cor de sépia, motivada pelo facto de sua mãe ter sido salpicada de fígado de porco, por ocasião duma matança, estando ela nos primeiros tempos da gravidez."

obrigada, Agustina, eu
também queria um pedacinho seu

Sunday, June 02, 2019

Sistema, ferida e frestas



“Diante de nós estão superfícies uniformes, portas seladas, e quase só somos capazes de protestar ou de bater com a cabeça contra elas. Não vemos ‘o quadrado da distância’. E no entanto ele ocupa mais espaço do que a matéria a que desejamos ter acesso. Embora a olho nu tudo esteja liso e compacto, na escala a que se reduzem as micro-realidades há distâncias que, em termos simples, podemos chamar brechas.

Pintasilgo, M. L. (2005), para Augusto Santos Silva in Palavras Dadas, ed. Isabel de Allegro Magalhães. Lisboa: Livro Horizonte, 2005, p. 74


Ateve-se à crença mais do que à criação
sobre  a dor dos fenómenos a evidência
de forças calculadas, bizarras, em prol
dum conjunto que em rebeldia do discreto
a movia, surda, dir-se-ia, à chalaça
de ociosos que cobiçavam ao contrário
o dinheiro (o que diziam dela, a mofa
entre os meus voltando a nota de cinquenta
com vista de Sintra — onde eram chaminés
do paço — diziam, são os cones das pernas
da “Pintassilga”; miúda, eu também ria
para não desfeitear a graça da família.)

Logo aí, sem núpcias, sem filhos, inconforme
trato, se tornou primeira dona de casa
das máquinas, e pouco lhe dava cuidado
saber aonde iriam, mas só os limites
dos homens perante elas, tal fuselagem
áspera no sangue exaltado, onde se rompem
veias quando a mão se perde na arbitragem
face ao grau de fusão, ao excesso de volume
combustível, à imprevisível travagem
do que a todo o momento se prepara
mesmo a nosso pesar. Deu de bandeja
a margem ao homem, estudou a linguagem

da mesa, zelou viragens da ditadura
embora se não adiantasse a primavera.
E foi (por fé, afinco, teima, chamamento?)
a quase primeira desta vez no poder
mas não propriamente — sabia que via
de fora demorado o povo a que chegava
e suspeitava pelo tempo gasto a ver
à escala que a tradição vexa, que o poder
nem vem de anúncio ou por denúncia - talvez
de raiz seja torto mas talvez, se a todos
calhar, mesmo a nosso desânimo, a matéria
ampliada ao quadrado por afeito prisma

sane feridas em abrindo brechas




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