Sunday, November 05, 2023

[na cabeça do sonho:] Exercício do Limiar


Existe uma porta dentro da minha cabeça.

Existe uma fechadura em forma de feto,

ferida florindo, tojo raso, lume ainda assim.

Fecho os olhos, vejo-lhe a maçaneta, é uma língua

em brasa, brava, estendida brecha,

uma língua deitada de fora da minha cabeça.

Espeto-lhe a mão para a rodar,

sinto-lhe rugas e estases, entraves de sangue,

massajo-a um pouco para a aclarar,

é uma perra maçaneta e range quando se dobra para lá.

E vejo o que não sei nomear e quero como coisas novas,

são sobretudo utensílios e processos, um enrolador

ou gancho que serve uma cópula inadvertida,

uma assoalhada exígua onde se planta um lírio

e não tem teto, um regador para o lírio.

Debaixo dos meus pés devem estar então campos nus

e sem ofício nem pressa, mas antes toco picos

que terei de afastar para não me aleijarem as solas.

É um chão que no fundo me dá vontade de recuar,

mas fazer isso atrasar-me-ia quando ainda nem andei.

Então o som de um cardo esmagado, então o som do lírio

a receber a água, então o pé mais fresco, então isto

move-se, então um jambé e uma inscrição na sua pele,

então talvez a palavra, amor, goteje, da tal cópula, não 

completamente legível, enfim, calcula-se, focando caracteres

e deixando desparecer outros. Como está o tempo?

Como raio entra o tempo cá dentro, no tímpano

da gota lá atrás? Ora, salpica, embebe um ou dois

traços na pele. Ora cai a cântaros e toca, isto,

o amor. Exploro-o. Lírio, gancho, quarto mínimo.

O quarto lembra a lua e esta incha. A lua lambe 

a chuva. Está grávida e tem de dormir muito.

Não sei quantos quadrantes quando tudo roda.

Trino feliz do lírio, brusco estalo do cardo. 

Ainda não vi nenhum animal mas há-de haver insectos 

com tanta humidade. Algumas asas por perto a distrair

e certo melindre, insónia, o cabo do descanso. Da realidade

transplanto o domínio do cansaço e fica tudo estragado.

Encontro alguém que conheço bem. É Gabriel, o Arcanjo

e pergunta: Quantas braças da areia ao mar?

Gostaria de consultar o dicionário, não sei: 

Braças é uma medida de profundidade ou distância?

O feminino de membros, as curadoras do feno,

as medas. Neste mundo não vi o mar, não sei do fundo,

ainda só vi um enrolador e campos

com duas espécies vegetais, o quartinho

pequeno sem céu onde a lua despeja um excesso de gotas

e é preciso um regador e um instrumento feito de pele

e sedas a roçar a palavra que não repito por pudor.

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