Tuesday, February 11, 2025

Comer frango frito


Detesto ter de confessar, meu irmão, mas há
Alturas em que estou a comer frango frito
Alturas em que não penso em mais nada senão comer frango frito
Alturas em que me esqueço completamente da família, da honra, do meu país.
Dos muitos derrames de sangue que me deves,
Das humilhações por que passei, dos crimes que cometerei —
De tudo, em suma, além da pele estaladiça do meu frango frito.

Mas eu não sou completamente vil, também há alturas
Em que me recuso a chupar ou engolir seja o que for
Se não estiver disponível para o geral da humanidade

(Se formos a pensar, isso rigorosamente não é nada)

E decerto é por isso que as maçãs podem provocar motins,
E a carne traz mortificação,
E cada sorvo de ar
Há de encher-nos os pulmões de pólvora e de fumo.

Sunday, January 26, 2025

Canção da Manhã



O amor deu-te corda como a um relógio de ouro gordo.

A parteira bateu-te nos pés, e o teu choro calvo

Ocupou o seu espaço entre os elementos.

 

Nossas vozes ressoam, ampliando-te a chegada. Nova estátua.

Num museu ventoso, a tua nudez

Tolda a nossa segurança. À tua volta, brancos como paredes.

 

Já não sou a tua mãe, ao menos

Tanto como a nuvem que destila um espelho para refletir o seu lento

Apagamento à mão do vento.

 

Toda a noite a tua respiração de traça

Tremula entre as rosas róseas rasas. Acordo para escutar:

Um mar remoto move-se no meu ouvido.

 

Um choro, e tropeço da cama, vaca obesa, florida

Na camisa de noite vitoriana.

A tua boca abre-se limpa como um gato. O quadrado da janela

 

Esbranquiça e engole as suas estrelas baças. E agora ensaias

A tua mão-cheia de notas:

As claras vogais sobem como balões.



Sylvia Plath


Wednesday, January 22, 2025

Função Poética

 Quando baixo os braços porque não vale a pena o labor sem o futuro, nem tudo é soberba, mas pode ser um erro crasso da ética do trabalho: não se aplicar no que não funcionará. Pensar em desempenho, função, performance, afinal talvez tenha sido também um deslize de Jakobson em Linguística e Poética. “Reparem aquilo de que me faço”, pode ser uma súmula da sua “função poética”. O que sempre é diferente de “reparem naquilo que eu faço” e salvaguarda a esperança do restauro. Porém, o ato dessa linguagem, tornando-se mais saliente quanto mais inefável a sua matéria, não deixa de ser um truque demasiado próximo da publicidade, como viu o próprio, ao analisar um slogan de campanha presidencial (I like Ike) —  ou a paranomásia que numa língua ágil nos vicia em coisas e candidatos, no desejo sem os factos. 

Mas hoje, quando fui para um mergulho na fonte fria, por entre a chuva rala, o ar cinzento e o fresco vento, havia um carro parado, adiantando-se, irritante, à seminudez do meu momento. Duas pessoas magras e altas – um rapaz, claramente um jovem, a outra com um capuz que não desvendava o sexo nem a idade – tinham descido o empedrado até às pranchas do lavadouro, as que restam da ideia de este lugar ser uma aldeia. 

 

A do capuz tirava-lhe fotos, tocava no rapaz ao de leve na nuca e atirava-lhe beijos. E eu achei que ele atirava pedras, mas eram bolas de sabão que o vento fazia agachar no raso lago, e as sombras eram como os círculos das pedras, ajustando-se ao transtorno, onde a queda da nascente me banhou quando me decidi a fazê-lo. Ou quando decidi que afinal aquilo era belo. Esteticizarei? direi, antes, foi tocante o mistério que ela – era uma mulher, era uma mãe – me explicaria na mais simples linguagem: o filho tinha autismo, e ela desviara caminho para irem ali 

porque era a água nos dias de cinza 

e o vento

e o ar de sabão dentro do ar

do firmamento 

quase chuva a deslizar 

para o charco

o que mais o tranquilizava

Saturday, December 28, 2024

In Memoriam


à Mariana Branco, que me ensinou  

a posição da árvore e outras 

espiritualidades a consolidar

 

Apontadas ao vazio, as nossas rótulas

paralelas a uma linha imaginária 

entre os olhos e o longe — há que arredondar

o irracional infinito — mostravas-me

como elevar a zero a coluna, raiz

 

das dez mil coisas, em que palavras

tombam, espelham, espalham.

Palavras, sobretudo as viperinas

que propagam. Deste-me o talismã

espanando o ar entre nós: Retira

 

era o que dizias, diluindo injúrias

de brigas vãs num aparar de sílabas

átomos, minutos, num ápice limpos.

Pior era a magia de anular o ácido

da ferida que sempre mais incide

 

contra nós... morde como formiga.

Disseste-me que nenhuma se deve

— Amiga —matar (por mais pequenino

o crime), que a formiga se põe a andar

com casca bolorenta de citrino

 

que a língua sarrenta revela o karma

do assassino. Treinaste-me a rodá-la

com a saliva na barriga; que afinal

se ascende, se cede, sem ondas...

de onde (será certo?) esse destino

 

para que foste cedo, insanamente hirta

tu, que sorrias tão profusa, devolverás 

ao céu — ao pó, ao nada (e eu aceito?

e isso prova que venceste a foleirice

da imagem? deste plano?) — tua luz dourada.

Saturday, November 16, 2024

Rípio

no muro ao sol, pedras roídas

somam tempo ao tempo.

O tema, supõe-se, é paralelo

no muro à sombra

no mais sombrio poema


nos bois de cornos apontados

a outros bois, no pastor

cujo bordão é uma enxada:

mas espalha a luz o aço

ao trilho, da cunha à torre


de alta tensão, o firmamento 


nem sempre se faz pedra

boi, bordão, ou cunha igual —

busca-se outro elemento

ou novo material, ou o muro

tomba, continua a gente

Calar

a quase homonímia

emudecer

e humedecer

ou a antinomia

homo

e nemo


não a

    barca

o que cala o mar


a cada grau

re cru

de

    s

        cer


nau fraga

o espaço


da quilha

à linha 

______ d'água

Thursday, October 10, 2024

Desligar e não ligar


curto desse teu swag

tua esbelta silhueta

o people até se engasga

com a nossa pirueta

nós com os bofes de fora

eles todos upside down

bora pôr o mundo em off

depois outra vez no on


quero ter contigo um date

no teto do mundo a pique

chegas lá com o teu skate

eu tenho patins e bike

se te cansas guio eu

e tu andas à pendura

fazermos slide no céu

é uma mega loucura


mêmo uma cena marada

o clima ‘tá bué da hot

o people lá na bancada

gira todo num virote 

bora desligar, my love

bora pôr o mundo em pause

vamos sair e not

not voltar a entrar



Foto de António Carlos Pereira da Costa

Monday, September 16, 2024

CERTA VEZ OLHEI PARA UM ESPELHO MAS NÃO CONSEGUI VER O MEU CORPO

                        a partir de Ghassan Kanafani

 

A minha argumentação é um documento; eu existo.

Aprendo isto de tanto ver o meu pai

 

sozinho à noite

traçando, retraçando 

um mapa

da Palestina, a tinta verde.

 

Antes de 1947, insistia ele, antes do retalho,

antes da nação se tornar história

 

antes de a minha língua confundir agradeço com sobrevivência

 

antes de eu escolher uma profissão que destaca

a morte da minha gente.

 

Uma máquina fotográfica derrete ao sol.

De muito longe, escuto os cliques moribundos do obturador, os pregões clamorosos 

     dos jornais 

que se atiram, o olhar cortante das órbitas.

 

Ergo-me diante do meu pai, as minhas próprias pupilas escancaradas

nos calos das suas mãos. Também eu desejo captar este momento,

 

retê-lo. Dizer, sim, esta violência é possível, e também dá prazer

olhar.

 

Mas quem é a audiência deste meu olhar

e até onde se espalha um flagelo

até amarelecer?



NOOR HINDI, in Dear God. Dear Bones. Dear Yellow, 2022, p. 6

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