Saturday, July 12, 2025

asa cardíaca

minha solidão é funda construi-a escavando-a 

com os punhos pelas camadas do tempo

com a avareza e a renúncia e a escuta do silêncio

depois descasquei-a com as unhas 

até me serem por vezes suportáveis

as paredes vivas como a carne e o barro

até o vazio ser visão quase dizível

depois outra vez ser vazio

e por horas não saber que fazer

com o montículo do meu coração

 

não faço nada com ele sugere-me

um amigo num sussurro de um livro

por sua vez partido entre outros que me fizeram balançar

julgando-me com menos amparo no mundo

eu que comi todas as migalhas para a segunda pessoa

até restar um cu de côdea eu sobre ela com uma perna

a outra incansavelmente no ar

roçada pelos pássaros

e também pelo murmúrio de um coletivo distante por que nutri

uma militância displicente

 

oh não se iludam o meu coração

é alto e vasto quanto baste

para se circular cá dentro

e bicar às portas igualmente amplas do peito

levo-lhe a mão e a queratina perfura-a

criou as condições ideais para o eco e o gorjeio

Thursday, May 29, 2025

Por alto


 

o que espero em tradução

não é captura ou passagem de sentidos

 

embora satisfaça a impressão de fio

 

busco a lâmina da entrevisão

em que o lido se torna cortina de vidros 

cai com brilho de tons 

e com barulho nos espanta formar-se algo

como outra língua afinal quase tida

 

(ou antes a sensação de a termos) 

em comum atingida quase lá

 

a imaginação será prática 

como num amor que começa

 

treinar na cabeça um beijo

a boca real dissonante rude

desejando que aconteça

 

dois pulsares batendo riscando 

num

Tuesday, May 27, 2025

O sorriso penoso,


como moldar com palavras o desagradável

pássaro ao negro lenho pregado

 

com palavras escapar, que não nos defendem

de tudo o que nas costas se arreganha

 

ou seja, como se tornará

na cova

 

o rosto que se putrefaz

a mandíbula saliente onde, doce ainda

 

um sorriso jaz.

Pássaro: como folha se decompõe – irrompe.


Elke Erb

Friday, May 16, 2025

Há na praia um lírio que não estava ontem

 

flor que rompe acima de areia tão súbita
leve branca é sua corola a haste verde
sobre a duna acena-nos contra a luz vê-se
ondas até espuma
.

Saturday, April 12, 2025

Odile Kennel

 


Sem qualquer noção de centro-

europa

sigo em Berlim uma tradutora 

mediterrânica

que me envia fotografias de 

fotocópias

e alguns genuínos retratos de um 

rosto

em que a luz vence a luta com as 

linhas

 

de um rosto que pediu ao sol asilo

entre dois troncos

Saturday, March 29, 2025

Sobre um júri doutoral

no pano de mesa azul

escuro, sinal

de aplicado pensar

cai a tarde


arde o sol

no plástico da garrafa

no bojo da esferográfica

solta-se o mar

Tuesday, February 11, 2025

Comer frango frito


Detesto ter de confessar, meu irmão, mas há
Alturas em que estou a comer frango frito
Alturas em que não penso em mais nada senão comer frango frito
Alturas em que me esqueço completamente da família, da honra, do meu país.
Dos muitos derrames de sangue que me deves,
Das humilhações por que passei, dos crimes que cometerei —
De tudo, em suma, além da pele estaladiça do meu frango frito.

Mas eu não sou completamente vil, também há alturas
Em que me recuso a chupar ou engolir seja o que for
Se não estiver disponível para o geral da humanidade

(Se formos a pensar, isso rigorosamente não é nada)

E decerto é por isso que as maçãs podem provocar motins,
E a carne traz mortificação,
E cada sorvo de ar
Há de encher-nos os pulmões de pólvora e de fumo.

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