Saturday, April 30, 2016

400 anos da morte de Shakespeare


Coração-martelo, caixão-pregos, paixão-fraude.
Shakespeare morreu em Maio há quatrocentos anos
e escreveu “as alegrias extremas têm fins extremos”
e lavrou com pena o óbito do amor romântico.
Desde aí montes de amantes são estudos de caso
nos centros de investigação do ocidente, mulheres e homens
a ser manuseados pela nuca, a devorar-se mutuamente
e às trevas — com que dificuldade se reconhecem no flúor
de faróis, ecrãs, salões vazios de escritórios e hotéis
— vasculham-nos, arrumando pela madrugada, os silenciosos
azuis, que têm sonhos mais magros que salários.

Peço de ti o que não te ocorre perguntar e tenho
para te apontar este mundo cheio de lapsos, é certo.
O mundo está cheio de mortos que não chegam
a cair, o mundo está cheio de mortos que são vivos
com pouca sede, o mundo está cheio de jovens
que escorregam em sonos sólidos de dois dias e ressuscitam
ao terceiro sem redenção sem ninguém que lhes verifique
o pulso ou o que tomaram ou lhes deram em excesso.
Peço de ti desculpa e compreensão pelas tantas deceções
que mal estanca o garrote da maturidade, descobrirás

um dia o que não podes remediar. O mundo está cheio
de adultos sem separáveis de soluções e cambaleiam
por cima das ondas sobre longas falhas tectónicas,
o mundo está cheio de apáticos convulsos, de terremotos
domésticos, de torpedos em casas de repouso, de sítios pitorescos
obliterados da cartografia onde havia piscinas e praças e
gelados e matinés de domingo, havia cruzamentos e esquinas
e olhos brancos vagabundos voltados para cima. O mundo
está cheio de arames e grandes migrações para lugares piores,
está pejado de bolores que se inoculam em desgraçados
e não saram mas disparam os índices das publicações
científicas e, assim, saberás um dia o que não te ocorre

perguntar — de que acidentalmente virás a achar
cambiantes. O mundo está cheio de revoltos que são
mansos ambivalentes e desenrolam rolos negros
de linóleo onde nada se pode ler; cobrem com eles
minas das guerras de todos os pais e rejeitam pacientes
dotes milenares de insensatez e resolvem que lhes resta
traçar movimentos de dança contra o precário amparo
de haver chão onde cair. Peço de ti justiça e vulnerablidade
com desconhecimento do medo, resiste a que te instruam
teorias da conspiração, aspira à imaginação total
dos outros, à distração que impele o turista à coragem,

pensamento mágico quanto baste, filha, espero acharás
coincidentemente: que a tua existência resultou em parte
do encontro de intensidades; ter havido absolutos
e aflições, ajustes de colisões, juras retocadas, memórias
readmitidas, sequências interrompidas, correspondências
de afetuoso pormenor. Desejo-te não menos e tudo
mais: o tipo de humor capaz de acusar e relevar,
o esquecimento que se destrinça da indiferença e nos dá
deslumbrarem-nos coisas que passam sem anterior recordação,
solicitude, curiosidade, o filtro amoroso
doce se possível na mínima diluição
.

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