Coração-martelo, caixão-pregos,
paixão-fraude.
Shakespeare morreu em Maio há quatrocentos anos
e escreveu “as alegrias extremas têm fins
extremos”
e lavrou com pena o óbito do amor romântico.
Desde aí montes de amantes são estudos de
caso
nos centros de investigação do ocidente, mulheres
e homens
a ser manuseados pela nuca, a devorar-se
mutuamente
e às trevas — com que dificuldade se
reconhecem no flúor
de faróis, ecrãs, salões vazios de
escritórios e hotéis
— vasculham-nos, arrumando pela madrugada, os
silenciosos
azuis, que têm sonhos mais magros que
salários.
Peço de ti o que não te ocorre perguntar e
tenho
para te apontar este mundo cheio de lapsos, é
certo.
O mundo está cheio de mortos que não chegam
a cair, o mundo está cheio de mortos que são
vivos
com pouca sede, o mundo está cheio de jovens
que escorregam em sonos sólidos de dois dias
e ressuscitam
ao terceiro sem redenção sem ninguém que lhes
verifique
o pulso ou o que tomaram ou lhes deram em
excesso.
Peço de ti desculpa e compreensão pelas
tantas deceções
que mal estanca o garrote da maturidade,
descobrirás
um dia o que não podes remediar. O mundo está
cheio
de adultos sem separáveis de soluções e
cambaleiam
por cima das ondas sobre longas falhas
tectónicas,
o mundo está cheio de apáticos convulsos, de
terremotos
domésticos, de torpedos em casas de repouso,
de sítios pitorescos
obliterados da cartografia onde havia
piscinas e praças e
gelados e matinés de domingo, havia
cruzamentos e esquinas
e olhos brancos vagabundos voltados para
cima. O mundo
está cheio de arames e grandes migrações
para lugares piores,
está pejado de bolores que se inoculam em
desgraçados
e não saram mas disparam os índices das
publicações
científicas e, assim, saberás um dia o que
não te ocorre
perguntar — de que acidentalmente virás a
achar
cambiantes. O mundo está cheio de revoltos
que são
mansos ambivalentes e desenrolam rolos negros
de linóleo onde nada se pode ler; cobrem com
eles
minas das guerras de todos os pais e rejeitam
pacientes
dotes milenares de insensatez e resolvem que
lhes resta
traçar movimentos de dança contra o precário
amparo
de haver chão onde cair. Peço de ti justiça e
vulnerablidade
com desconhecimento do medo, resiste a que te instruam
teorias da conspiração, aspira à
imaginação total
dos outros, à distração que impele o turista
à coragem,
pensamento mágico quanto baste, filha, espero
acharás
coincidentemente: que a tua existência resultou
em parte
do encontro de intensidades; ter havido
absolutos
e aflições, ajustes de colisões, juras
retocadas, memórias
readmitidas, sequências interrompidas,
correspondências
de afetuoso pormenor. Desejo-te não menos e
tudo
mais: o tipo de humor capaz de acusar e relevar,
o esquecimento que se destrinça da
indiferença e nos dá
deslumbrarem-nos coisas que passam sem
anterior recordação,
solicitude, curiosidade, o filtro amoroso
doce se possível na mínima diluição
.
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