Monday, December 31, 2018

(De)bater a tradução

1. Este blogue é primeiramente para eu me orientar com algumas coisas que não quero perder, especialmente poemas.

2.  Consigo admirar quem prefere bater. Mas a minha natureza é debater-me.

3. A minha primeira identidade será como tradutora literária. Há mais de vinte anos que o faço. Há mais de dez que o ensino. Tenho pensado muito nisso, embora a antiguidade não seja pergaminho de nada. Tenho um plano na parte de trás da cabeça e em algumas folhas de papel de um dia fazer um "Manual Lírico da Tradução".

4. Posto isto, é-me difícil ficar indiferente à discussão que tenho visto desenrolada neste blogue.  Em princípio agradar-me-ia (mas no caso ainda não percebi se) uma discussão esmiuçada da tradução, e mesmo - apesar da supracitada natureza não confrontacional - o que o autor dos posts chama "A Guerra dos Cem Anos da Tradução". Porque a tradução é um espaço de fronteiras e até viria a calhar.

5. Mas se não me é indiferente, a verdade é que também não consigo nesta discussão ter qualquer posição diferenciada. Não a consigo seguir. Parece-me uma discussão feita não nas fronteiras mas atrás de trincheiras, com bastantes barreiras de som e surdas caixas de ressonância à mistura. Não tenho - nem quero -  facebook, por um lado, para ler o Miguel Serras Pereira, e não estou dentro das teias das fontes informativas do Diogo Vaz Pinto, por outro, para perceber a que se refere ele quando diz, por exemplo, que "um editor vem à palheta." 

6. Do que li, há uma referência objetiva a uma prática - que a ser verdadeira - me parece grave e eticamente reprovável: dois tradutores trabalharem textos de um autor para a mesma edição (e, no caso, ainda por cima, a poesia completa do Rimbaud) "de costas voltadas", sem afinarem critérios, sem cotejarem fontes de fixação textual, etc (mas aquilo que eu não sei é onde foi Diogo Vaz Pinto buscar esta informação). 

7. Sobre os lençóis de traduções e versões contrastivas que se têm vindo a publicar no referido blogue, para provar a alegada tacanhez ou o esforço pedestre de apenas um destes tradutores (Serras Pereira), posso preferir outras (sou muito parcial, por exemplo, em relação ao génio de Augusto de Campos), mas se bem consigo perceber ainda não vi nenhum erro objetivo - à parte, talvez, discrepâncias que resultam do uso de versões diferentes, sendo que este também não resulta para mim claramente explicado ao longo dos vários posts repletos de alusões mais ou menos cifradas a declarações/justificações / conversas (?) anteriores, que não tenho como re-traçar ou achar completas. Um dos casos, é no post 3, a tradução de "l'Eternité". A reprodução da tradução de M Serras Pereira parece acabar abruptamente, não percebo porquê. Lá para  meio há um "orietur" que vem do latim usado pelo Rimbaud no original e que me troca as voltas, para estrela-guia, mas para mim está muito bem a cadência de, por exemplo:

Alma sentinela,
Confessa o murmúrio
Da noite tão nula
E do dia de lume.

Eu preferia que a opção do(s) tradutor(es) não tivesse recaído tanto - ao que me parece - na redondilha, mas nesta estrofe concreta temos um Rimbaud que, aliás, me devolve ecos de Verlaine, —e calha bem, há quem diga que afinal o poema da eternidade era para convencer o amante a só ter olhos para o poeta.

8. Mas realmente eu só poderia entrar nesta discussão lendo toda a obra, cotejando, esforçando-me por compreender os critérios dos tradutores e a sua eventual divergência ou concordância com ideias da poética de Rimbaud, e o que possa ela ter para nos dar no nosso espaço e tempo. Não consigo por ora, mas penso que a critica o deve fazer - estudar aquilo a fundo - mas fazendo-nos compreender realmente o que se passa, deixando-nos ver o fundo às claras - e com algum didatismo. Muito mais do que a tradução, a crítica, julgo, tem a parte chata da literatura, que é a sua orientação e aprendizagem. E, pese embora o rimbaldiano aviso à "delicadeza" com que se perde a vida (agora virão as balas) - com respeito. Não o respeito da hierarquia, mas aquele que nos merece alguém que não só seguramente passou horas intermináveis com aquele trabalho específico, mas tem dado provas de servir os livros laboriosamente, desfazendo a sua bainha e procurando para nós a sua alma durante anos. Na "primeira parte da tréplica", Diogo Vaz Pinto começa por dizer que Miguel Serras Pereira "há-de ser, assim o dizem, um excelente tradutor de livros técnicos". Só isto é de uma enorme injustiça e, creio, rasteirinho, assombrando o que há de muito bom no trabalho de jornalismo literário (as melhores entrevistas a escritores que temos podido ler ultimamente) do autor das acusações. Mesmo descontando as dez linhas que se seguem e nada adiantam à elucidação do caso (e onde custa ver a inteligência ao serviço do desprezo que fermenta e inquina a prosa), só isto seguramente é o garante de que o interlocutor (Serras Pereira) se indisporá ao diálogo. Não só Serras Pereira traduziu grandes obras literárias (para citar uma só - Dom Quixote) como os outros livros que traduziu estão nos âmbito das Humanidades e do pensamento filosófico-crítico. Alguns que conheço, designadamente os de Steiner, são da melhor literatura. E neles inclui-se, claro, o Depois de Babel, quinhentas páginas sobre tradução. 

9. No último post da sequela, temos uma magnífica citação de Javier Marías - eu própria não a conhecia, por muito que na matéria tenha lido. Li, por outro lado, o ensaio de Serras Pereira, "Da Língua de Ninguém à Praça da Palavra". Não é um osso mole de roer, e a sua propensão benjaminiana é algo acentuada (o que amiúde inclina para a incompreensibilidade a balança comunicativa da tradução). Mas aqui, em versão mais digerida, está algo com que concordo e que poderia ser um bom ponto de partida, em paralelo com a do Javier Marías, para tornarmos a pensar nestas coisas:



10. Eu pelo-me por isso: a tradução como hermenêutica de dinâmica de línguas, e que puxe ou desenrole o saber também nas realizações várias traduzidas, neste caso, os intervalos, o desfasamento, a clivagem, a temerária polissemia e a diferença entre segmentos que se fazem, como lá diz o Javier Marías, por causa da ausência do original. Através deles procuremos sentido(s) na passagem do tempo, na ajuda ou resistência ao esquecimento que engendra o poema contínuo (não serão os tradutores que o fazem, sobreviventes pragmáticos do romantismo?). Concerto de memórias - a tradução é agora. 
Bom ano.

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