Monday, December 17, 2018

Nas traseiras da cidade ocupada





Quando a vimos pela primeira vez
pensámos que já tinha morrido
- à nossa irmã – não prevenindo
que seríamos o que ela fazia.
Nas traseiras da cidade ocupada
batendo à máquina num quarto
cujas janelas todas vedam
uma língua alheia
à que nos habita
a beleza existe
como nunca na desfiguração
moral, no desmaio
da esperança aleijada, excessiva.

É-nos a língua estrangeira cifra
e surto de esquisito consolo.
A crueldade existe
e não fomos nós quem a inventou.
A luxúria existe
e não foi por termos nascido
foi haver fome, incontidos vícios
blindados lábios, cândido calor
embaciado, calar que nada
ouve, é a nossa irmã
que entra no bar de casaco fino
e nós que não prevenimos
o bruto penetrar de corpos
os furos de chumbos repentinos.

Quando a vimos passar o vestíbulo
a entrar para o banho, a descer
o vestido, a exibir ao espelho
as nádegas de escultura
soubemos a partir daí
que a nossa mãe era diferente.
O conflito torce-nos
entre fofas almofadas
uma brancura insuspeita
uma aguda tortura.
Saímos para as traseiras
do quarto, na cidade
ocupada, arma de brincar
na mão divertindo o dilúvio
no olhar, achando
o bom velho senil
e a caridade existe
mas é assim.
Nós os anões aos pinotes
procuramos o ar

Enquanto o abandono
com pernas esguias e claras
ao apito da locomotiva
marcha nas traseiras
a cidade despe-se
de membros válidos.
Nas traseiras da cidade
no interior das couraças
nos contentores do degredo
vive-se a guerra, travam-se
as mulheres
com suas soluções
de rancor e abrigo.
A infância trilha a solidão
com os passos precisos

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