Saturday, February 02, 2019

Traduzir, ser vil: arte e/ou adultério

O processo hermenêutico em tradução, que se dá pelo reconhecimento da linguagem diferenciada, apoia-se na atenção a colocações invulgares, jogos de palavras, rimas, padrões sintáticos, deíticos (inesperados, retrospetivos), a posição do sujeito em relação ao verbo e ao objeto, cadeias semânticas de ambiguidade e conotações variadas. O resultado da atenção a estes elementos é um modo extraordinário de aprofundar o conhecimento pela crítica e análise de texto (Gaddis-Rose 1997). Nesta tarefa, destrói-se e (de)compõe-se, extraindo-se fragmentos de resistência para se poderem fazer escolhas sobre o que se percebe ser fundamental manter ou compensar (o chamado “caroço” / core, variável consoante a fome de quem traduz) – algo que podemos “treinar” com base num misto de probabilidade e semelhança mas não numa delimitação prescritiva. George Steiner, que desenvolveu um modelo de quatro fases para a tradução enquanto hermenêutica – a começar com a confiança (o salto de fé ontológico na intenção de que haja sentidos a extrair), passando pela agressão (a supra-referida dissecação) até à incorporação e restituição – era extremamente crítico da legitimidade teórica de uma ciência da tradução, “que haveria de implicar testes críticos e falsificações” (1998 b p. 109). Não obstante, a teoria tem-se apoiado nos escritos de Steiner, não se eximindo também de os criticar.


Refira-se, a bem da afirmação da agência da mulher no trabalho artesanal, a crítica dos estudos de género que enquadra o discurso de Steiner numa longa tradição de metáforas de tradução que são sexistas. Desde a “bela infiel”, blague aparentemente cunhada por d’Ablancourt no século XVII, até à equação da tarefa com um trabalho derivativo, consequentemente feminino e mais ou menos transparente, passando pela fantasia da violação do texto original ou da lasciva adulteração da língua materna. A segunda e terceira fase enunciadas por Steiner, de agressão e incorporação, descritas numa linguagem sugestiva de penetração invasora e de inseminação que robustece, prestam-se a este tipo de crítica (Cahmberlain 1988; Round 2005).[1]

Em todo o caso, Steiner preferia, ao discurso de ciência sobre a tradução, uma “arte exata”, comunicada por “relatos interruptos e episódicos” (1998 b p. 109).




[1] A bela infiel

É precisa uma guerra que se invente
para criar – dixit George Steiner,
misógino, ou nisto o transfere
mais ou menos o teu pensamento
pingando de belicismo. O que Steiner
diz concerne, de resto, a tradução;
no fim há – rara – a restituição;
no meio, boas vindas à cativa,
“A vencida Grécia será mestra
de Roma”
 assim: língua nativa
cede à espessura da sua serva
e toma o corpo heróico da rival
(já Haroldo se achava canibal
mas em geral só comia gajos).
Tu, és duma escola mais risonha:
não lanças, abres; não bates, reages.

Lês vísceras com ácido e peçonha
mas de princípio dá-se confiança.


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