Monday, December 27, 2021

O MAR É HISTÓRIA


Onde os vossos monumentos, batalhas, mártires?

Onde a vossa memória tribal? Senhores,

naquela cripta sombria. O mar. É no mar

que estão trancados. O mar é História.

 

Primeiro, foi o óleo que pulsava,

pesado como caos;

então, qual luz ao fundo do túnel,

 

a vela acesa de uma nau,

e foi o Génesis.

Depois foram os gritos enlatados,

a merda, as lamúrias.

 

Êxodo.

O coral soldando osso a osso,

mosaicos 

acamados sob a bênção do sombrio tubarão,

 

e foi isso a Arca da Aliança,

depois, dos soltos filamentos de arame 

de sol no pavimento do mar,

 

as harpas plangentes de servidão babilónica,

enquanto os caurins brancos, como algemas,

se agarravam aos homens afogando-se.

 

e essas foram as pulseiras de marfim

do Cântico dos Cânticos,

mas o mar não parava de virar folhas brancas

 

à procura da História.

Então vieram os homens com olhos de ferro, âncoras,

que se afundaram sem campas,

 

rufias que assavam gado nas brasas,

deixando costeletas queimadas na praia, folhas de palmeira,

depois o bucho, espumejante, raivoso

 

da onda gigante que engoliu Port Royal,

e isso foi Jonas,

mas onde a vossa Renascença?

 

Senhor, está trancada nas areias do mar

além, depois da pedra amoladora do recife,

onde flutuam fundo as caravelas portuguesas;

 

calcem as barbatanas; eu próprio vos levarei lá.

É tudo muito subtil e submarino,

através de colunatas de coral,

 

passem janelas góticas de exoesqueletos,

até onde a garoupa rude fecha os olhos

de ónix, de joias encrustada, qual rainha calva;

 

e essas grutas ogivadas de percebes

cravados como pedras

são as nossas catedrais,

 

e a fornalha que antecipa os furacões:

Gomorra. Ossos que os moinhos trituram

em marga e papas de milho,

 

e foi isso as Lamentações;

apenas as Lamentações,

não foi História;

 

vieram então, como baba nos lábios secos do rio,

os juncos castanhos das aldeias

acamando e congelando em cidades,

 

e à noite, os coros de melgas,

e sobre elas as espiras, 

lancetando o lado de Deus

 

vieram depois as irmãs brancas aplaudindo

o progresso das ondas

e foi isso a Emancipação —

 

regozijo, Ó regozijo —

rapidamente esvaído

enquanto enxuga ao sol a renda do mar,

 

mas não foi isso História,

isso foi só fé,

e então cada rocha se quebrou numa nação própria;

 

então veio o sínodo das moscas,

então veio a garça secretarial,

então veio a rã-touro a berrar por votos,

 

os pirilampos cheios de ideias luminosas

e os morcegos como embaixadores tingidos,

e os louva-a-deus, a polícia de caqui,

 

e as lagartas peludas dos juízes

escrutinando caso a caso,

e então nos escuros tímpanos dos líquenes

 

e no sal escarninho das rochas

com suas poças de mar, veio o som

como um rumor sem eco

 

da História, realmente a começar.


Derek Walcott

Saturday, December 18, 2021

[na cabeça do sonho:] do amor pedestre

Guiando até Madrid, aproximávamo-nos do hotel.

Sem sítio para estacionar, levámos o carro ao colo

(matéria de velhos sonhos... é também para outros

recorrente?). Para assegurar a cama deixámo-lo

numa berma em curva. Depois já não estava lá

(aqui é roubo frequente, garantiam os amigos

da poesia). Depois cerrava-se a noite e eu 

procurava, tu desaparecias (ligava-te, mudaras

para o quarto em frente, tinhas-te desviado

de ti, dizias.) Aí desistia de termos veículo

para voltar. A consolar-me, uma amiga antiga

(de quando eu fazia vela) trazia um saco

de entrecosto, pála-pálas – quente furor

a farejar o literal: tínhamos chegado um ao

outro mas francamente não havia meio

de transporte ou alimento.

Tuesday, December 14, 2021

[na cabeça do sonho:] de pretender reaver a perda

 Leva-se a coisa ou pessoa da realidade para dentro do sonho. No meu caso, a mochila azul às flores. Faz-se a coisa desaparecer. No meu caso,  apeada de um veículo sobre um passeio. Saber que a coisa se reave na realidade e acordar para a mentira da perda. Mas antes complica-se o sonho. A mãe passa por uma tasca de interior de trevas e névoa e afirma ter detetado a mancha colorida da mochila. Vou buscá-la entre as pernas de dois senegaleses sentados nos bancos corridos. Ganho de bónus lá dentro uma lancheira. Ando a ler o Frantz Fanon, acordo para o auto-denegrimento. 

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