Existe uma porta dentro da minha cabeça.
Existe uma fechadura em forma de feto,
ferida florindo, tojo raso, lume ainda assim.
Fecho os olhos, vejo-lhe a maçaneta, é uma língua
em brasa, brava, estendida brecha,
uma língua deitada de fora da minha cabeça.
Espeto-lhe a mão para a rodar,
sinto-lhe rugas e estases, entraves de sangue,
massajo-a um pouco para a aclarar,
é uma perra maçaneta e range quando se dobra para lá.
E vejo o que não sei nomear e quero como coisas novas,
são sobretudo utensílios e processos, um enrolador
ou gancho que serve uma cópula inadvertida,
uma assoalhada exígua onde se planta um lírio
e não tem teto, um regador para o lírio.
Debaixo dos meus pés devem estar então campos nus
e sem ofício nem pressa, mas antes toco picos
que terei de afastar para não me aleijarem as solas.
É um chão que no fundo me dá vontade de recuar,
mas fazer isso atrasar-me-ia quando ainda nem andei.
Então o som de um cardo esmagado, então o som do lírio
a receber a água, então o pé mais fresco, então isto
move-se, então um jambé e uma inscrição na sua pele,
então talvez a palavra, amor, goteje, da tal cópula, não
completamente legível, enfim, calcula-se, focando caracteres
e deixando desparecer outros. Como está o tempo?
Como raio entra o tempo cá dentro, no tímpano
da gota lá atrás? Ora, salpica, embebe um ou dois
traços na pele. Ora cai a cântaros e toca, isto,
o amor. Exploro-o. Lírio, gancho, quarto mínimo.
O quarto lembra a lua e esta incha. A lua lambe
a chuva. Está grávida e tem de dormir muito.
Não sei quantos quadrantes quando tudo roda.
Trino feliz do lírio, brusco estalo do cardo.
Ainda não vi nenhum animal mas há-de haver insectos
com tanta humidade. Algumas asas por perto a distrair
e certo melindre, insónia, o cabo do descanso. Da realidade
transplanto o domínio do cansaço e fica tudo estragado.
Encontro alguém que conheço bem. É Gabriel, o Arcanjo
e pergunta: Quantas braças da areia ao mar?
Gostaria de consultar o dicionário, não sei:
Braças é uma medida de profundidade ou distância?
O feminino de membros, as curadoras do feno,
as medas. Neste mundo não vi o mar, não sei do fundo,
ainda só vi um enrolador e campos
com duas espécies vegetais, o quartinho
pequeno sem céu onde a lua despeja um excesso de gotas
e é preciso um regador e um instrumento feito de pele
e sedas a roçar a palavra que não repito por pudor.