Sunday, November 26, 2023

25 de Quê?

                                para o José

 

Na rua do Século, quase a meio

da Revolução dos Cravos, frente

ao Min. do Ambiente, 24/

11/2023, ele veio

 

surpreso, azoado, um tanto alheio

ao sangue no cabelo, para trás.

Tinha dezasseis anos, o rapaz

só se lembrou da mãe, no receio

 

do que ela pensaria da notícia

da vara na cabeça no passeio.

Em volta, alguma gente lhe pedia

 

que não fechasse os olhos e doía

o enxerto do futuro. O polícia

— ninguém viu — pensaria no outro dia.





Sunday, November 05, 2023

[na cabeça do sonho:] Exercício do Limiar


Existe uma porta dentro da minha cabeça.

Existe uma fechadura em forma de feto,

ferida florindo, tojo raso, lume ainda assim.

Fecho os olhos, vejo-lhe a maçaneta, é uma língua

em brasa, brava, estendida brecha,

uma língua deitada de fora da minha cabeça.

Espeto-lhe a mão para a rodar,

sinto-lhe rugas e estases, entraves de sangue,

massajo-a um pouco para a aclarar,

é uma perra maçaneta e range quando se dobra para lá.

E vejo o que não sei nomear e quero como coisas novas,

são sobretudo utensílios e processos, um enrolador

ou gancho que serve uma cópula inadvertida,

uma assoalhada exígua onde se planta um lírio

e não tem teto, um regador para o lírio.

Debaixo dos meus pés devem estar então campos nus

e sem ofício nem pressa, mas antes toco picos

que terei de afastar para não me aleijarem as solas.

É um chão que no fundo me dá vontade de recuar,

mas fazer isso atrasar-me-ia quando ainda nem andei.

Então o som de um cardo esmagado, então o som do lírio

a receber a água, então o pé mais fresco, então isto

move-se, então um jambé e uma inscrição na sua pele,

então talvez a palavra, amor, goteje, da tal cópula, não 

completamente legível, enfim, calcula-se, focando caracteres

e deixando desparecer outros. Como está o tempo?

Como raio entra o tempo cá dentro, no tímpano

da gota lá atrás? Ora, salpica, embebe um ou dois

traços na pele. Ora cai a cântaros e toca, isto,

o amor. Exploro-o. Lírio, gancho, quarto mínimo.

O quarto lembra a lua e esta incha. A lua lambe 

a chuva. Está grávida e tem de dormir muito.

Não sei quantos quadrantes quando tudo roda.

Trino feliz do lírio, brusco estalo do cardo. 

Ainda não vi nenhum animal mas há-de haver insectos 

com tanta humidade. Algumas asas por perto a distrair

e certo melindre, insónia, o cabo do descanso. Da realidade

transplanto o domínio do cansaço e fica tudo estragado.

Encontro alguém que conheço bem. É Gabriel, o Arcanjo

e pergunta: Quantas braças da areia ao mar?

Gostaria de consultar o dicionário, não sei: 

Braças é uma medida de profundidade ou distância?

O feminino de membros, as curadoras do feno,

as medas. Neste mundo não vi o mar, não sei do fundo,

ainda só vi um enrolador e campos

com duas espécies vegetais, o quartinho

pequeno sem céu onde a lua despeja um excesso de gotas

e é preciso um regador e um instrumento feito de pele

e sedas a roçar a palavra que não repito por pudor.

Blog Archive

Contributors