A partir de Inger Christensen, Alfabeto, e de Edgar Allan Poe, “Um Sonho noutro Sonho”[1]
Se acreditamos que o planeta é sonho nosso
então talvez a nossa extinção o apague
mas pode ser que nem por isso que
fosse sonho o que criássemos e
o sonho o mundo – ademais, a
ciência tem provas de muitas
coisas criadas que existem
“as árvores de alperce ex-
istem”, diz a poeta Inger
Christensen - há coisas
que sobrevivem ao seu
criador: como alperces
às árvores de alperce
os filhos aos pais
e os pais a deus
mas como se-
ria o sonho
sem esse
sonhador
último e
o último
fruto do
mun-
do
se
acreditarmos
que existe o planeta
além do nosso sonho
e que as provas da ciência não se limitam
a coisas criadas meramente delirantes, subjetivas e gerativas,
então sabemos que o nosso sonho não acaba o mundo mas os seus
frutos a nós o seu veneno o nosso sonho neste tempo de “restantes” retornando
ao livro, cito
“em países cujo calor fará gerar precisamente a cor de carne que os alperces têm.”
[1] E guardo na mão fechada
Uns grãos da areia dourada...
Tão escassos!… mas num segundo
Dos dedos vão para o fundo,
E eu choro, ah, desabalado!
Oh, Céus! Por que os não aperto
Com um laço mais esperto?
Oh, Céus! Por que não posso eu salvar
Um só... das garras desse ímpio mar?
Tudo o que é visto, tudo o que é suposto
É só um sonho noutro sonho posto? (E A Poe, “Um Sonho noutro Sonho”)
A contrapelo, Christensen: “pensa como um espelho // de tão vital importância; vê / no seu trono de nada / o vértice da tempestade de areia; / vê o quão banalmente repousa / no mais pequeno grão de areia / uma engenhosa vida / fóssil encerrada / depois da viagem; vê só / com que tranquilidade carrega / o cardume de começos / do mar primevo; vê só / a simplicidade de um signo / no qual como substância / a verdade se vê reflectida / vê só com que verdade, / graciosidade; deixa estar as coisas; junta / as palavras, mas deixa / estar as coisas” (pp. 40-41)