A propósito do primeiro número, dedicado a Afonso Henriques, da história infatilóide da nação que está a ser publicada serialmente pelo Expresso na colecção “Era uma Vez Um Rei”, já aqui o Camarada D deixou pertinentes considerações, a que se podiam acrescentar ainda mais, como o maniqueísmo racial com que se perpetua a versão heróica da vitória dos pequenos e honrados portugueses contra os numerosos e avassaladores mouros. Mas é sobre o nº 4 da referida colecção, dedicado a “D. João I, O de Boa Memória”, que gostaria agora de ventilar a minha fúria de feminista compulsivamente pirómana de soutiens (cf. comments a este post). É que, relativamente a duas das mulheres mais interessantes da nossa história que marcaram este período, Leonor Teles (dita “a aleivosa”) e a lendária padeira, aka Joana Brites de Almeida, que abateu sete espanhóis saídos de um forno de Aljubarrota, o livro - caucionado, tal como os restantes, pela “revisão científica” [sic] da Associação de Professores de História, escrito por uma donzela finalista de Psicologia (!!!), narrado pela consorte dum intelectual socialista, e com ilustrações do filho dum poeta da intervenção pela liberdade de Abril - mantém uma impávida omissão. Em contrapartida, numa das canções festivaleiras que pontuam assiduamente esta série, só uma figura feminina é digna de singularização nominal, D. Filipa de Lencastre. E nestes termos: “[D. João] Casou com D. Filipa, / Rainha e mãe virtuosa / Que educou bem os seus filhos, / Sendo honesta e caridosa.” Concede-se ainda, noutra das cantigas, a que festeja a Batalha virilmente chefiada por Nun’Álvares (com esta pérola versejante do cançonetismo popular, “Com a táctica do quadrado / Damos conta do recado”), dar voz ao feminino, mas, não surpreendentemente, em indistinto coro e contraponto de “mulheres”. E que cantam elas? “– Lá estão os nossos maridos / Nos campos, a combater. / Façamos uma sopinha, / Para melhor os receber…”
Face a isto, com masoquista ansiedade, aguardo ardentemente o único número da colecção dedicado a uma gaja que, à falta de melhor varão, conseguiu trepar à hierarquia do trono: “D. Maria II – A Educadora”. É o décimo primeiro. Se é mãe, ou pertence ao grupo de risco das que podem vir a sê-lo, faça já a sua reserva. Sob pena de descurar a cultura genérica de suas filhas e filhos.
(foto: insígnia das enfermeiras da Cruz de Aviz)
7 comments:
Já sabíamos que a História perpetuou imagens polarizadas da mulher, que alternam entre o anjo (a rainha St. Isabel, D. Filipa) e o demónio concupiscente e sequioso de poder (D. Taraja, Leonor Teles, etc.). A Dama dirá que se trata de uma herança falocêntrica do passado e da nociva influência católica. Eu eu associo-me à sua posição com o seguinte pleonasmo: subscrevo por baixo.
Mas, claro está, que o meu problema não é só o do "maniqueísmo de género". O meu espanto engloba este e outros mitos do passado que continuamos a perpetuar no nosso inconsciente "consciente colectivo" (acho esta minha subversão de Jung pertinente).
É extraordinário que, numa época de desconstrução e de suposta consciencialização crítica, continuemos a "comer" o mesmo tipo de história do passado, como o Antigo Regime o consagrou. E estes livros reproduzem, perante as bocas mudas de historiadores e de intelectuais, os papéis sexuais e as ideias-feitas, os maniqueísmos e os disparates de então.
A triste realidade é a aceitação acrítica desta "história de Portugal" representa a necessidade portuguesinha de não abalar as nossas certezas fundadoras. "Pensar incomoda como andar à chuva." E se pensarmos muito, ainda descobrimos a verdade sobre nós mesmos. E esse é mesmo o maior dos nossos horrores!
Por isso, toca a formar mais uma geração de cidadãos-ameba para termos um Portugal conformado consigo próprio. Comam chocolates, que aí está toda a metafísica do mundo!
Desafio: vou escrever um mail à Associação de Professores de História a denunciar as falácias dos livros desta colecção e a criticar a legitimação que a Associação lhe conferiu. Desafio a Dama e os demais leitores deste blogue a fazer o mesmo.
ahahahah... quer dizer, iso é para a tua prosa, mas qo ao facto seria mais o caso de chorar. Vou passar un coup d'oeil. Gostei do "feminista compulsivamente pirómana de soutiens"- delicioso. Assim como da caracterização da equipa q organiza esta revista.
beijinhos
Concordo com o apelo do Alexandre.
Mais uma vez, um excelente post, a que sou profundamente sensível.
"São rosas senhor, são rosas senhor..."
Essas "imagens" "construídas numa determinada época e num contexto socio-político e cultural da História, são interessantes meios para a caracterização e interpretação de qualquer sociedade. É claro que numa perspectiva crítica, porque senão de História passaríamos às estórias!
Obrigada.
Nefertiti, importas-te de trocar por miúdos o teu último comentário? Não tenho a certeza de o ter percebido bem.
Em relação ao comentário do D. Dinis, em "um blog que seja seu", devo dizer que o volume respeitante (o nº2) até me pareceu dos melhorzinhos da série, mas agora não tenho tempo, nem se calhar pertinência, para explicar as minhas razões. Se calhar é porque gosto da Nossa Senhora das Rosas.
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