Monday, October 26, 2015

Cenas Tristes

                                                para M. T.


Quando jovem adulta às vezes embarcava

em viagens, não vem ao caso, já então era pelintra

o teatro para mim era cheio de torcidas na cadeira

e como o mar os atores estalavam além das pessoas

e falavam e moviam um caudal quase tanto como a massa da água

era como se inspirassem demais e quando ficavam bravos

não havia arnezes que os amarrassem ao convés dos palcos.



Aportámos certa noite no Chiado a ver o Godot:

um palhaço, um sujeito, um carril betumado no estaleiro de Deus,

tudo era duro e o ar pálido e crespo como o avesso de um fruto,

provável efeito de papelão e luzes, ressoava o tablado de oco,

do subpalco esvaíam-se os atores além das pessoas.





Mas no final o Mário Viegas tornou a si do carácter

e à boca de cena como Balzac acusou

a atitude da espetadora que à entrada displicente

com um assobio desfalcado e um mal amolado estalo dos dedos

exclamara que era roubo o preço do teatro

quando tanto da vida davam os atores às vezes sob tortura

quando a juventude irreal esbanjava fáceis fortunas.



Eu era a insolente e por mais que me afundasse

não achei no pânico a escotilha na plateia

e enjoei e engoli meio desfeita pelas têmporas

por todo o esterno empolgado, por instantes só quis

que o Mário Viegas não tivesse existido se não pudesse calar-se

relevar, abençoar, envolver no seu pullover

a minha cabeça rubra à raiz dos cabelos

desmerecida então do mar do teatro de velas e pinturas



na saída dos artistas fiquei aflita para lhe falar

mas nenhum esperava e nenhum torceu

e garrulei sobre o acesso à cultura em vez de o abraçar

e acabei por seguir dali no carro dos amigos que tudo

calaram, e o condutor com o nariz colado à cana

levou todos a casa para se me confessar a sós

apaixonado, o que era absurdo e sórdido.



Pouco depois deixei de embarcar

mas não me fiquei por ali nem passou o pior:

anos mais tarde com meu amor num bar que salvo o erro

tinha nome religioso houve um outro Mário mais novo

que também era do teatro. Eu já devia ter parado de beber

e não me agradava a conversa que creio ter sido

ou eu ter entendido acerca de gajas de toda a maneira

eu já não era tão jovem e sofria mais.



E sempre cobarde dirigindo o juízo ao que menos contava

a minha mão voou aberta à bochecha do novo Mário

e ele inchou, senão de dor, de rancor, todo

transfiguração e ultraje, nisso vendo a deixa

para colocar a mais alta voz da representação

no vitupério das minhas maneiras, das minhas peneiras

tristes cenas e duques e bobos todos da madrugada

a saber que eu não valia um chavo, que insultara um falecido génio

naquela mesquinha noite onde aquele próprio

ferido Mário estivera e não esquecera.



Por todas as minhas desintegridades

me desculpem os Mários, o teatro e a equação da arte

com o bem, mesmo se não more aí o seu maior veículo,

me desculpe o mar além disso

sem totalmente vir ao caso peço só

me possam perdoar amigos que não defendi
.

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