Saturday, February 23, 2019

Não fechem as portas

Não me fechem as portas, altivas bibliotecas.
Pois aquilo que vos faltava a todas as prateleiras bem providas, sendo do que todavia mais precisavam, eu trago,
Vindo da guerra emergente, um livro fiz.
Nas palavras do meu livro nada, na sua esteira tudo.
Um livro separado, não ligado ao resto nem sentido pelo intelecto.
Mas tanto que se não diz, florescentes latências, vos cativarão em cada página.

[de Salut ao Monde, 10]

Eu vejo macho e vejo fêmea em toda a parte
Eu vejo a serena fraternidade dos filósofos
Eu vejo o conceitualismo da minha raça
Eu vejo os resultados da persistência e do engenho da minha raça,
Eu vejo fileiras, cores, barbáries, civilizações, misturo-os indiscriminadamente,
E saúdo todos os habitantes da terra.

itálicos são sublinhados de F. Pessoa em Leaves of Grass
+ pensar Rabequista Louco e Trompetista Místico
+ supremo clarim de estridências raras (R.)
clarion + rayon — para uma fé da vidência

Friday, February 15, 2019

Engrama

Neste caso a definição do dicionário parece
antes uma série em crescendo: 1. Traço ou marca
duradoura. 1.1. Definitiva e permanente essa marca
num tecido nervoso por estímulo muito forte impressa.
1.2. O traço na psique com rasto físico definitivo –

i. e. um aplique

de recalque, espécie de cavalo-marinho nas cabeças
implorando festas. Não só por sofrer naturalmente
dum não-correr de equídeo encalacrado na mente
como por achar-se cruzado de cenas foscas e espessas
do nosso passado. Ocupa na base do crânio um pé

curvado,

hipocampo, diz a gíria médica, e já os corretores,
vulgo psicanalistas, veem que um trauma se apura
consoante o intervalo entre as punções e a altura:
+ até onde, a que sangue acima dos lobos esse corte
evolui para gangrena? + fundos os cascos na vida

do que na arena.





Saturday, February 02, 2019

Declaração de Intenções


Para aqueles que insistem diluir


isto que escrevo aquilo que eu vivo

é mesmo assim, embora aluda aqui

a requintes que com rigor esquivo.


À língua deito lume, o que invoco

te chama e chama além de ti, mas versos

são uma disciplina que macera

o corpo e exaspera quanto toco
.

Traduzir, ser vil: arte e/ou adultério

O processo hermenêutico em tradução, que se dá pelo reconhecimento da linguagem diferenciada, apoia-se na atenção a colocações invulgares, jogos de palavras, rimas, padrões sintáticos, deíticos (inesperados, retrospetivos), a posição do sujeito em relação ao verbo e ao objeto, cadeias semânticas de ambiguidade e conotações variadas. O resultado da atenção a estes elementos é um modo extraordinário de aprofundar o conhecimento pela crítica e análise de texto (Gaddis-Rose 1997). Nesta tarefa, destrói-se e (de)compõe-se, extraindo-se fragmentos de resistência para se poderem fazer escolhas sobre o que se percebe ser fundamental manter ou compensar (o chamado “caroço” / core, variável consoante a fome de quem traduz) – algo que podemos “treinar” com base num misto de probabilidade e semelhança mas não numa delimitação prescritiva. George Steiner, que desenvolveu um modelo de quatro fases para a tradução enquanto hermenêutica – a começar com a confiança (o salto de fé ontológico na intenção de que haja sentidos a extrair), passando pela agressão (a supra-referida dissecação) até à incorporação e restituição – era extremamente crítico da legitimidade teórica de uma ciência da tradução, “que haveria de implicar testes críticos e falsificações” (1998 b p. 109). Não obstante, a teoria tem-se apoiado nos escritos de Steiner, não se eximindo também de os criticar.


Refira-se, a bem da afirmação da agência da mulher no trabalho artesanal, a crítica dos estudos de género que enquadra o discurso de Steiner numa longa tradição de metáforas de tradução que são sexistas. Desde a “bela infiel”, blague aparentemente cunhada por d’Ablancourt no século XVII, até à equação da tarefa com um trabalho derivativo, consequentemente feminino e mais ou menos transparente, passando pela fantasia da violação do texto original ou da lasciva adulteração da língua materna. A segunda e terceira fase enunciadas por Steiner, de agressão e incorporação, descritas numa linguagem sugestiva de penetração invasora e de inseminação que robustece, prestam-se a este tipo de crítica (Cahmberlain 1988; Round 2005).[1]

Em todo o caso, Steiner preferia, ao discurso de ciência sobre a tradução, uma “arte exata”, comunicada por “relatos interruptos e episódicos” (1998 b p. 109).




[1] A bela infiel

É precisa uma guerra que se invente
para criar – dixit George Steiner,
misógino, ou nisto o transfere
mais ou menos o teu pensamento
pingando de belicismo. O que Steiner
diz concerne, de resto, a tradução;
no fim há – rara – a restituição;
no meio, boas vindas à cativa,
“A vencida Grécia será mestra
de Roma”
 assim: língua nativa
cede à espessura da sua serva
e toma o corpo heróico da rival
(já Haroldo se achava canibal
mas em geral só comia gajos).
Tu, és duma escola mais risonha:
não lanças, abres; não bates, reages.

Lês vísceras com ácido e peçonha
mas de princípio dá-se confiança.


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