Sunday, September 29, 2019

Filhas do clima




A desobediência das filhas bravias implica
que nos falta o pulso e o tempo foge

dizem elas que somos cegas nós
dizemos que não pesam as consequências

não por sermos harpias amedrontadas
ou nos acusarem de obsolescência ser tarde

porque nunca as defendemos dizem elas
que nos protegem por defeito
                                                                              Nós fizemos por elas sacrifícios humanos

então bloqueiam os acessos sentam-se
nas encruzilhadas cantam acantonadas

enfrentam a ordem de peito crescido dão corpos
para nosso bem dizem dar a liberdade se preciso

para as levarmos a sério não nunca as defendemos
em excesso nem contam muito os ralhos

embora nos aflijam tanto que com elas vamos
cedendo à cautela resguardo e sobressalto
                                                                         Nós não fizemos delas sacrifícios humanos

porque nos iludimos ser só questão de tempo
para o amor ou o reconhecimento ou a prece

ou a frugalidade ou a ciência dar seus frutos
para o pior ser sonho ou susto de momento

escalou o próprio tempo e bruto aperta os polos
duma espécie soberba crente que os afetos justificam

tudo querer os dons os danos tão inquietos tão
ávidos tão ineptos tão contritos como insanos

      Elas sacrificam-se por si por todas e todos dizem

os tão sobejos dons os danos tão acerbos                                                                 Não                    
os dessorados poços furos lodos todos dizem                                                          Mãe

com solene descaramento insolente coragem 
louca alegria ansiedade tamanha compaixão só

seria bom poderem estragar-se pouco mais
ou menos do que antes nós sem maior razão

e despudorada língua a empurrar a urgência
ou com a barriga a técnica sem outra previdência                        Já sabias não seria uma solução

Sunday, September 22, 2019

[na cabeça do sonho: da biodiversidade e da origem das espécies]

Ele insistia que se arquivassem um de cada espécie de livros, a bem da polinização cruzada. Ela alegava que não fazia sentido segundo a seleção natural, e que salvar artificialmente as existências de agora mostrava pouca equidade com as extinções do passado, aliás tendentes à robustez genérica da poética hoje. Discutiam sobre métodos de arqueologia e encarniçavam-se à conta da competição como valor absoluto. Depois havia um que se dedicava a criar espécies únicas.

Tuesday, September 17, 2019

[na cabeça do sonho: da casa e da infância]

Um armário no corredor tinha aparentemente uma porta falsa pela parede, de onde vinham guaxinins, esquilos, coelhos, macacos e anões em alternados bandos forrageiros, mas eu não conseguia perceber o que levavam. A casa já tinha aparecido antes, é aquela que alugo em permanente oscilação de mudança, eu tinha uma coisa importante a fazer mas era-me difícil abandoná-la, salvo por uma parte em que íamos partir num teleférico e A. dançava a fazer eco das perguntas tolas de J., com a alegria duma gaiata para quem a fala é uma brincadeira que ainda se está a estrear.

Thursday, September 12, 2019

[na cabeça do sonho: da propriedade privada]

Ele e o pai deitavam fogo ao mato em volta da casa onde ela vivia com o filho dele. Culpavam-na por ter pedido para o seu aniversário 24 velas + 7 anos de sangue. Teria dito que compensava. Aos 31. Tomavam essa compensação por infidelidade. 

Tuesday, September 10, 2019

semi-homófonas

a vida é muito curta para ser mal cumprida

a vida é muito curta para ser má comprida

Monday, September 02, 2019

decepção somática

pressente-se a descida
de níveis dum qualquer químico
sem se poder acudir-lhes
nota-se a precipitação 
sensível
sem contra-reação
porque é retumbante

incompadecida 

a queda
pelo ego veloz 
do túnel
no esterno 
funda
um covão de pânico
na nunca um íman 
de chumbo

avança para engolir-
-nos, rápida pressão. Enganamo-
-la com verbos
em vez de psicologia 
mas apesar do método
falha a validade:
como quem atira berlindes a Golias
ou migalhas como esteira no caminho

para voltar;
que ela—que tremo de saber  
que não terei mais ágil
certeiro termo 
que quem é e eu
se chamar (que ela 
se perceber far-
      -me-
-á dizer) virá—

virá devorar


Sunday, September 01, 2019

[na cabeça do sonho: trans-siberiano]

Era uma viagem de comboio para o leste - onde? uma vaga ex-rússia, alguma geografia exótica da europa-fantasma. No beliche, descobria por baixo, rodas sobre carris a riscar a barriga da terra, o dactiloscrito de um famoso perseguido. Escrevera soterrando a literatura numa aparência de relato maciço e burocrático. Para achar as palavras-jóia era preciso multiplicar intervalos com grande complexidade. Caso se polisse o método, o achado prometia ser tremendo.

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