Monday, March 30, 2020
A virtualização das classes
A romantização da quarentena é um privilégio de classe e a personificação do vírus é de uma misantropia bizantina - de acordo, mas adiante: reticulada em casa, "conheci", por via de recente adesão ao Instagram, mais gente nestes últimos vinte dias do que nos vinte meses antes. Pus-me a seguir escritores e afins artistas que percebi serem meus contemporâneos nos quatro costados e vejo agora as suas fotografias, os seus ecrãs afanosos de criatividade dentro das minhas quadrículas, as suas mensagens de coração à janela, certamente mais elevadoras do que lhe vão soluçando as imaginações, de onde sairá talvez ao seu tempo uma arte ansiosa. Correspondo, participo desse palpitar de streaming, partilho os meus passos em volta entre a casa e as escadas de trás, mimando uma meta-dança, fake it till you make it.
Sou seguida e sigo, além disso, gente com nicks divertidos, estrangeiros, estapafúrdios, que não faço a mínima ideia quem sejam, mas que partilham, também eles, cintilantes lagos de cisnes contra a peste.
A colonização em curso da zoom-escola, porém, afasta-me dos virtuosismos em directo para me levar a ponderar se vale a pena abreviar o programa ou substituir conteúdos por outros mais cativantes e/ou atuais, como por exemplo - parece que estão mesmo a pedi-las - redes sociais e cultura popular participativa. Sobre isso, relembro-me: as redes aumentam - como é sua função e elas próprias apregoam, "filtram" - a clivagem social. Qualquer um, em teoria, pode "publicar" a sua história, mas as janelas seguem a bitola do condomínio. É grande a facilidade em privatizá-las e em admitir exclusivamente quem se quer ou reconhece num mesmo clube. E há uma espécie de política de terra queimada: cada nova rede procura atrair as vanguardas mais dotadas (leia-se, abonadas) e deixar as anteriores para "o povo" e para os ultrapassados (assim foi, dizem os dados da sociologia, na transição do myspace para o facebook, ou deste para o twitter e instagram). E sim, comiseramo-nos, emocionamo-nos até e agravamos os nervos com "aqueles que não têm a nossa sorte", que vão ficar muito pior numa crise imprecedente, vamos tendo notícias deles nos rodapés das tendências da curva viral, sabemos dos que sobem proporcionalmente às portas dum sítio com o lindo nome de "Casal Vistoso" e as condições de uma barraca sem tropas.
Entretanto, neste "estado emergente", passei a seguir pessoas que não sei se têm carne viva. Deixei de seguir aquelas que diariamente encarnavam à minha frente, sem que eu fosse grandemente vista ou achada e muito menos "gostada": nos transportes públicos ou até sentadas em papelões em frente ao supermercado que continuo a frequentar. Desconheço, aliás, se desapareceram porque as convenceram a proteger-se no tal barracão (e valha-nos a espantosa coragem dos voluntários), se as escorraçaram por pânico de o vírus se pegar exponencialmente com(o) a miséria, ou se deixaram de vir simplesmente porque as moedinhas se acabaram. Ah, o metal é finalmente vil e somos todos, como nos solicitam, agentes de saúde pública, encartados clientes de superfícies com acesso controlado.
P. S. Termino este post e verifico ter recebido, às 00:16, um email da "equipa escola virtual" que me trata pelo nome e dá "truques e dicas para o ensino online". Entre eles: "não esteja mais de um dia sem dar feedback aos alunos." Isto é verídico. Isto anda tudo ligado e nem sequer é um plano: superproteger, infantilizar, sobrecarregar, desautonomizar, acefalizar, insensibilizar — as massas virtuais.
Friday, March 27, 2020
[na cabeça do sonho: lista de presenças]
Demasiado literais os casos dos alunos esvaídos no streaming, seus quadrados de repente pretos.
A viver numa residência Erasmus, tinha perdido o meu frigorífico e o meu filho adoptivo não se satisfazia com as barras energéticas coladas com velcro nas paredes, berrava para que lhe fizesse o jantar.
Os corpos são cargas de semicondutores à flor dos dedos, ou antes: toda a pele se torna extremidades, fichas num morse de mau contacto. Acordamos de um pesadelo para o mesmo, pior e com mais definição.
A viver numa residência Erasmus, tinha perdido o meu frigorífico e o meu filho adoptivo não se satisfazia com as barras energéticas coladas com velcro nas paredes, berrava para que lhe fizesse o jantar.
Os corpos são cargas de semicondutores à flor dos dedos, ou antes: toda a pele se torna extremidades, fichas num morse de mau contacto. Acordamos de um pesadelo para o mesmo, pior e com mais definição.
Friday, March 20, 2020
más influenzas
Edgar Allan Poe in Obra Poética Completa, ilustração de Filipe Abranches e tradução de Margarida Vale de Gato, Lisboa, Tinta da China, 2009
Friday, March 13, 2020
Walt Whitman, uma nota preparatória a Folhas de Erva
“Há que perceber que não se pode ter na escrita qualidades que não acalentamos honestamente cá dentro. Há que perceber que não se consegue afastar da escrita os sinais do mal ou da frivolidade que acalentamos cá dentro. Se somos do género de adorar ter um criado atrás da cadeira ao jantar, isso há-de aparecer na nossa escrita; se temos uma opinião vil das mulheres, ou guardamos algum rancor, ou duvidamos da imortalidade, estas coisas transparecerão naquilo que deixamos por dizer mais do que no que dizemos. Não há truque nem ardil, não há arte nem receita, que nos façam ter na escrita aquilo que não possuímos em nós.”
[traduzido a partir do sublinhado por F. Pessoa na biografia de Whitman da autoria de Bliss Perry]
[traduzido a partir do sublinhado por F. Pessoa na biografia de Whitman da autoria de Bliss Perry]
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