Tuesday, January 26, 2021

Antígona aos céus cobertos

Mas que escale a mudez ao rosto, se virem os olhos 

ao outro, ao lado, ao longe, ao vago, alheios 

e o braço se estenda ríspido, palma fletida, cinco

dedos coibindo quem avança um passo mais – 

e isto se faça por nobreza de caráter, por 

hospitais, mais velhos, familiares. Não, não 

obstante a lúrida exposição de vítimas

entubadas por astronautas nos telejornais

e o alarme dos pesquisadores de Foucault, poucos

lucram nisto. Ou a maioria não, a ponto 

de nos fazer melhores do que desejávamos. Mesmo

que a segurança sanitária não tenha o caché

da liberdade, sempre contradizemos Darwin

e o triunfo do mais forte, senão a própria morte

 

Mas que se meçam as distâncias, se fite 

o espaço e feche, se calculem os metros, graus

do antisséptico, o calibre do medo, do aperto

nas fronteiras, nas ombreiras às portas dentro

dos corpos. Veremos quanto tempo suportamos 

como mónadas. Mas que haja na rua a peste

e a revolta seja uma hipótese remota o povo

tudo aguenta afinal aqui como na China 

pior sem poder apontar um dedo de culpa ou 

erguê-lo em direção, caminho, menor mal, justiça

 

Mas que morram sós, sem que sejam vistos

sorvido todo o ar até falhar o esforço, que fiquem

corpos isolados, metidos num saco, num cofre 

rodados para dentro de uma gaveta ou lá para onde

se levam, sem que dedos nus alguns amantes 

os toquem, puxem para baixo por último 

as suas pálpebras, nem uma lágrima lhes bata

 

Mas que sendo as ruas grandes campas, o som 

curve para dentro, quase nada entre muros já

repasse ou às janelas assome – um corvo

por exemplo, um bútio, um rouco pombo — mas que

grite uma filha grega louca por tal descaso de rito e

se ouça neste fundo, estique um O a máscara o luto e

zele para que subam os mortos, os vivos tenham pé

Sunday, January 17, 2021

Correspondências

                                        para  MM

Acabado o papel escrevo

no envelope; contemplo prévias

cartas, a dupla casa à escala

dos nossos planos: ramificada, radiante

e ordeira de um lado, do outro

um escorço de caos, hemisfério

em falta, inclinação que se habita

voltando com rodeios à comum

divisão, depois novamente

 

difere, chispa, fende avenidas

de desespero inábil incoincidência

de relação, então vacila até

que hesita grácil, reserva física

e destro cruzar de espíritos. Assim

distribuo arcanos que baralhámos

(evito esqueletos no cartório)

fantasio contigo a grande tirada

antes das palavras um qualquer

mais amplo mistério malgrado

às vezes a ignorância elementar

e na garganta entaladas umas

quantas insuficiências a apoucar

 

É que em rigor não percebo

que parte em teu lugar pertence

aos meus sonhos; contorno

para voltar a semelhantes arredores:

os teus olhos forrados de humidade

um longe que translado para os meus

enquanto ditas e deitas fogo

às plantas da tua feitoria, o rastilho

do trivial, os medos férteis

da criança que eu invejo e tu

quando reparas calas-te no pátio

 

então vamos para dentro

tornando ao início não se liga

a desvãos mas a altos degraus

aluindo um mais fundo a cada troca

não aos deslizes das confidências

mas aos vimes vivos do silêncio

e intervalos de solidão nas bocas

por escrito, varas vedoras, mãos

a infletir pilares destreinados

músculos escombros do coração

Thursday, January 07, 2021

Léo e Luiza, documental


Uma árvore, a mãe desdobra a casa do fantasma

é um pop-up – susto em decalque, teia de invólucro

num velho filme da RTP com Luiza, q. b. calma

com o filho ao lado

 

a primeira vez que a li foi em tradução, num álbum

do Ferré, que adorávamos, por exemplo a dos anarcas

com amor no punho e l'air entêté —foi um baque

porém ler lá que a mulher cria com os ovários

 

enquanto resta ao homem inventar alma ou coisa

que o valha­ (Luiza não contribuiu, vão consolo:

era 1984, o cônjuge traduzia os escólios,

ela as canções)—a mãe, uma árvore, o filho ao lado

o fantasma.

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