1.
Marina, la que yo sempre conmigo he traido
escreve-o a seu rei Cortés, meu concubino
aquele que me traz me trai, aportou num barco
me recebeu por escrava me trocou por dote
me ofereceu e retomou quando me viu útil
no interceder da fala nesse jogo bizarro
de telefone avariado
em que participaram:
um padre (Aguilar), três línguas, o temido
Moctezuma, o soberbo meu amo, e uns quantos
caciques das terras, funcionando assim: Cortés
falava para o padre, o padre em maia para mim,
eu em náhuatl quer para o imperador quer
para outra gente que de bom grado trocava,
como eu, os astecas, seus altares de sangue
pelos cristãos e o deus único que são três
batizaram-me de Marina e em revanche
chamaram os índios “o Malinche” a Cortés;
como eu, que já fui Malintzin, a cativa
que agora é um híbrido, um corpo
estupro, a mãe de Martín o mestiço
do México, a quem os caciques temem
e as mulheres sibilam la chingada
e já esquecem os filhos levados pelo tirano
anterior e dizem que eu trouxe traidor
mais ímpio, a varíola, que por ouro
me despi, não honro a raça (mas como?
se morreu meu pai, me vendeu minha
mãe, se o abandono foi minha senha
o tráfico a minha vantagem, a dual
língua meu passe) que “não as represento”
mas qual entre nós não se sumiria já
criada para desembarcar rainha
qual de nós não sofreu de redução
à míngua, qual de nós, chingada, não teria
se pudesse, trocado de mãos e de língua?
2.
Os meus ovos, logo os pus na cesta
da indiferença do ego—da equi-
distância da sorte; se nasci
nobre, me enjeitaram por molesta
me tomaram por morta, por cativa
moeda, me passaram entre reinos
donos, credos. Por minha parte brandi
sobre um império dotes de linguista.
Quando com Cortés de raspão passámos
no retorno da conquista pela terra
de onde parti, a mãe velha, o irmão
que herdou—deixei-os gratos, pasmos:
nada de nativo me era congénito.
Eu pude ser real na abdicação.
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