Saturday, March 06, 2021

Raças de Tradutores


Não sei quantos tradutores negros existem no meu país, nem na Holanda. Admito que não conheço nenhum(a) tradutor(a) literário(a) não branco(a), mas decerto que os há e porventura terão mais dificuldades em trabalhar na área do que eu. Nesta, como noutras profissões, sou a favor de políticas de incentivo ao ingresso no mercado de trabalho das minorias, inclusive beneficiando-as sobre os seus congéneres maioritários, numa tentativa de desarmadilhar injustiças sócio-históricas. Por isso, creio ser interessante o caso das manifestações contra a escolha da poeta holandesa branca Marieke Lucas Rijneveld para traduzir a obra da poeta negra Amanda Gorman, que recentemente declamou o poema “The Hill we Climb” na cerimónia inaugural da presidência de Joe Biden. É interessante pelo facto de ter levantado a lebre e agora falar-se dela, e podermos todos perguntar-nos afinal onde estão os tradutores negros, para além de ponderarmos o âmbito das “políticas de identidade” e o que possa ser a parcialidade da representação. 

No entanto, a acusação da mais veemente detratora desta escolha, a ativista cultural negra Janice Deul, acaba por atirar ao lado da lebre e ferir a própria possibilidade de tradução. Disse Deul que era uma “oportunidade perdida” a editora em causa, Meenhof, não ter procurado alguém que, como Gorman, fosse “uma artista de spoken word, jovem, mulher e orgulhosamente negra.” Nem interessa muito que a escolha da editora tenha recaído precisamente sobre Rijneveld por esta ter alcançado o sucesso bastante nova (tem agora 29 anos e Gorman 22) e por, assumindo-se como pessoa de género não-binário, habitar, como Gorman, um campo de diferença. Interessa que o argumento de Deul retira à tradução a possibilidade de comunicação intercultural que justifica a sua existência e a sua necessidade. Ou seja, no limite, só Gorman teria legitimidade para traduzir Gorman, o que, mesmo imaginando que ela soubesse várias línguas, lhe retiraria a amplificação / atualização de sentidos conferida pela tradução de outrem. E em última análise, teremos de suspeitar da própria tradução e porventura aboli-la, já que, sendo as línguas inseparáveis das suas culturas, a transposição entre estas pode ser encarada como uma substituição da cultura do outro, conducente à rasura da  diferença identitária. Só que a convicção contrária parece muito mais produtiva para um mundo melhor: a de um(a) profissional de tradução ter a capacidade de transportar culturas e contagiar identidades nas línguas que transpõe.

Rijneveld resolveu abdicar, dizendo que se achara capaz de honrar as palavras de Gorman (a qual também se disse honrada pela escolha de Rijneveld), mas vendo bem estava “numa posição de pensar e sentir[-se] dessa forma, quando muitos não estão”. Gostaria de saber se no entender de Rijneveld, ou de Deul, estes últimos incluem os que um dia possam vir a escolher, como Amanda Gorman, recitar poesia para saudar a tomada de posse de um presidente branco, heterossexual e homem mais velho?

Entretanto Rijneveld, no rescaldo da sua desistência, lançou um poema, “Todo Habitável”, cujo título traduzo da tradução inglesa do holandês, feita por uma mulher, de que o Guardian reclamou o exclusivo (quantos ímpetos proprietários há afinal neste mercado?). Perpassam-no várias contradições emocionais, desiguais, e gosto precisamente de um verso que nos fala das “arruaças de não saber”. O sujeito desse poema, porém, afirma um “orgulho rochoso”, declara dar o peito às balas, procura meter-se noutros sapatos e fugir a que o metam em caixas, mas acaba por render-se, capaz de perceber quando o lugar não é dele(a) e se deve “ajoelhar pelo poema porque outra pessoa o poderá tornar mais habitável”. Mas não é sempre assim? E não é a humildade de se ser precário veículo para a habitação alheia do poema que subjaz ao datável, limitado, tradutor?

   Está em causa também a potência da empatia, muito associada à tradução, e não isenta de um certo lastro ideológico helénico-cristão, cuja tendência usurpadora devemos acautelar. Em todo o caso, continuo a achar que é boa ideia tentar vestir a pele do outro, e péssima traçar linhas em que negros sejam melhor traduzidos por negros, mulheres por mulheres, e muito menos brancos por brancos. Gostaria, ao invés, que muitos brancos fossem traduzidos às cores para que essa amplificação/atualização de sentidos da tradução possa também servir para desconstruir, questionar, apropriar ou descartar. Lembre-se, para terminar, o visionário projeto de descolonialização da literatura ocidental teorizado pelo brasileiro Haroldo de Campos no ensaio (entre outros) “Da razão antropofágica” (1981): devorar o autoritário para alimentar o tropical.

2 comments:

O.K. said...

A mim essa discussao me deu vertigem ... como escreves, pela direccao que tomou. Já nao se tratava de estructuras sociais mas de essencialismo. Traducao pode ser ignorante, mas nao o é pela essencia da traductora, mas sim pela sua ignorância, quando nao tem consciência política. E achei interessante que isso acontece com uma profissao tao pouco percebida geralmente. Fala-se da lingua maravilhosa de uma autora traduzida, como si nao houvesse a transicao de lingua, e de repente, se volveu super-visível. Da super-invisibilidade à super-visibilidade. Incrível! Grande beijo, Odile

dama said...

ai que difícil ter de traduzir com consciência política :) obrigada super-tradutora

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