Sunday, March 07, 2021

Ainda sobre tradutores e o acesso à habitação (contraditório)

 Reparo que o meu último post teve um nível exagerado de leituras, o que talvez indique que esteja a ser comentado noutros canais. Gostaria de conversar mais sobre o assunto aqui, queiram deixar contributos na caixa. Isto porque tenho algum desconforto nisto. Reli o poema de Marieke Rijneveld. Ocorreu-me que esteja a querer dizer que a sua decisão tenha implicado descartar estrategicamente qualquer ideia sobre tradução (colocar-se nos sapatos do outro) em favor de uma "habitação mais inclusiva do poema", já que a sua recusa obrigará necessariamente a algo em que antes não se pensou: procurar e contratar um(a) tradutor(a) negro(a). Isso teria um lado positivo, desenvolvendo também o debate sobre o "quão" colorida têm sido a nossa literatura e a tradução (eu acho que as duas têm cor e sexo, ainda que essa diferença não seja discernível na leitura, e que idealmente se procure a trangressão - até mais do que a inclusão). Entretanto, de forma ambivalente, a editora declarou estar à procura de "uma equipa" - porquê? Rijneveld poderá até voltar à cena com uma colega negra, o que não sei se favoreceria muito a causa. Ou a ideia da "equipa" poderá transformar a concepção da profissão: lançar-se-á assim a tendência de ter um comité de diversidade para assegurar o resultado inclusivo da obra traduzida? (e isto mesmo que o original nem seja assim tão inclusivo?)

Talvez se encontrasse outra maneira de fazer a justiça reparadora pela falta de acesso à profissão, sem implicar comprometer, de uma maneira muito perigosa para o futuro, a latitude e o exercício (re)generativo da tradução literária. E preferia que Rijneveld fizesse uma declaração política clara sobre as razões da sua desistência. 

2 comments:

Marina Tadeu said...

D’ama peço que não te assustes mas não me contive. Desconhecia a celeuma, que alargo para fora do âmbito da tradução porque a interpreto como uma derivação deste novo puritanismo em torno da apropriação cultural importado pelos seguidores de tendências. Uma moda de um tempo histórico e que tende para o separatismo das afirmações, em que o indivíduo muitas vezes confunde as decorrências do acaso com os seus próprios méritos ou deméritos. Estamos ainda muito longe do ideal em que raça credo sexualidade ou outra qualquer expressão identitária não impliquem orgulho ou vergonha, como a meu ver não deveriam implicar, porque estas diferenças fazem simplesmente parte da igualdade humana. Porque é que eu, tu ou Rijneveld não podemos, “colocarmo-nos no sapato do outro”? Porque não passámos pelo que ele passou? Mas como é que o “outro” sabe? Uma mulher branca com um namorado negro pode ser tão vítima de racismo quanto uma mulher negra. Um fundamentalista islâmico pode ser vítima do mesmo escárnio que o nosso zeitgeist reserva para um seguidor da Cientologia. Um abstémio sexual pode ser tão alvo de exclusão quanto um multisexual. Um padre tão ostracizado quanto uma pessoa de aparência não binária. Amanda Gorman, como apontaste, declamou o seu poema para uma administração pouco ilustrativa da identidade que ela resgata como representante. Ela não foi submetida à escravatura nem esteve a marchar em Selma. Não me parece também que tivesse sido vítima de discriminação nas oportunidades - antes pelo contrário. Ela usou o legado dos que a precederam e dos que continuam a ser maltratados para o reclamar para si. Mas essa “luta” nunca será resolvida enquanto todos - deste e do outro lado - só conseguirem discernir no outro uma cor de pele. Uma identidade é sempre mais complexa do que essa cor, outras aparências, as crenças políticas e religiosas, ou as preferências íntimas. Ela deriva de um cruzamento de muitas outras - a começar pela língua que se fala. Uma língua é, como apontaste no texto abaixo, “inseparável das suas culturas”. Se calhar, empregaste o plural porque tens uma noção clara de que uma língua nunca existiria se não fosse ela própria uma apropriação cultural. No caso da nossa, uma miscigenação do latim do árabe do gaélico etc. Se o não fosse, todos falariam a mesma tal como, “no limite, só Gorman teria legitimidade para traduzir Gorman.” Este novo puritanismo inquieta-me, acho-o perigoso, sim, porque é essencialmente separatista. Eu sou portuguesa mas não tenho orgulho ou vergonha disso tal como não me compete ser representante de um país inteiro ou reparar os abusos históricos dos meus predecessores pela vigilância histérica e detractora de, por exemplo, um branco que goste de ter a pele queimada e usar perucas afro. Afinal, se as pessoas devem ter o direito de mudar de sexo, porque não o de mudar de raça? O que posso fazer é exactamente isso, reclamar para mim o direito à empatia mesmo se a pessoa por quem sinto mo negue. Posso identificar-me com outras identidades. É claro que em matéria de discriminação há reparações a fazer. Imensas. Uma vez pediram-me que fosse à Universidade Nova falar sobre jornalismo em zonas de conflito. Numa assembleia de uns 30 e picos, cinco eram portugueses negros. Na altura não conheci redacção portuguesa que incluísse um. Não vejo nenhum a apresentar noticias na TV e ainda hoje por vezes me pergunto que destino seguiram aqueles que me fizeram muitas perguntas sobre África porque nunca tinham lá ido. Será que trabalham em publicações ou sites dirigidos a um público de ascendência africana quando na verdade viveram em Portugal mais anos do que eu e como tal poderiam cobrir qualquer desenvolvimento nacional dando-lhe um contexto melhor informado? Se é esse o caso, lamento. Pois não é pelo separatismo, pelo isolamento disfarçado de “orgulho”, pela possessividade de uma “herança”, que se combate a discriminação. É pela inclusão. E esta deveria partir de todos os lados. Obrigada pela paciência e saúde, sim?

Nota: sabias que desconhecia La Malinche do poema acima? Obrigada pela apresentação :)

d'ama said...

Obrigada, Marina, concordo na generalidade. E também que, nas identidades, a maior descriminação continua a ser a racial e nós estamos numa posição de privilégio.

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