Na enésima rábula de "vai querer mais chá", a lebre de Março pega numa faca afiada com feitio de lasca lunar, olhos diabólicos q. b., pousa-a na xícara e corta-a com precisão pela metade, exigindo, "só meia chávena por favor". Se é nonsense, faz sentido, só que eu ainda não me tinha lembrado que um fio de faca cindisse louça, ou que meia chávena pudesse conter líquido fervente sem amparo.
Esse abismo do mundo possível que a representação torna presente é o que recordo com mais nitidez do meu primeiro encontro com a Alice no País das Maravilhas. Ainda que não faça parte da obra de Carroll, mas de Disney, a lição, creio, serve para os dois, e embora o seu deleite, à primeira vista, pareça provir de um recurso comum ao humor e à poesia, a literalização da metáfora, o que ali acontece é a evidência de um gesto (usar a faca para cortar a louça e não a merenda) e de um sentido (entender duplamente o que seja uma metade) que se podem reavivar no mundo por via de um código (visual ou verbal). Ao mesmo tempo que retalham a nossa perceção, e inclusive os nossos afetos (até então o chá para mim era a minha avó nos seus dias de vagar e boa têmpera, não um bule com um arganaz), este novo uso e sentido permitem outros ligamentos e preparações sem necessariamente desmentirem as noções que antes tínhamos sobre facas e meias chávenas. De resto, mesmo que a alternativa amedronte o nosso conforto, a sua maravilha está em que só podemos contemplá-la pela co-existência - isto era o que até agora pensava, mas se também for aquilo, há preparações possíveis. Creio que o curto-circuito provocado pelo nonsense, não é, A meia chávena talvez se possa beber pelas orelhas, se a primeira arrefecer e as segundas crescerem.
Foi isto que redescobri com Rui Costa quando escolhemos o nome Alice para a protagonista da peça que viríamos a chamar Desligar e Voltar a Ligar. Escreveu-me ele
Tal como a ficção científica, o nonsense não vive dos seus implementos, das extensões que chocam. O nonsense não é uma questão de aplicação, mas de desenvolvimento: de uma sintonização aguda das nossas disponibilidades sensoriais e dos dispositivos sensoriais dos códigos que temos, postos ao serviço da potência, fazendo do mundo um laboratório ou um gabinete de curiosidades generativas, estendendo as suas direções e, meio-esperançosamente, os seus fins, sem necessidade de bordos estanques ou de métodos eficazes de secagem na travessia do líquido ao sólido, do derretimento da face ao sabor da boca.
Muito se tem escrito sobre nonsense, se a sua ordem impõe uma destrinça do absurdo, se configura um sem-sentido (no-sense) ou um contra-senso. Para mim, configura mais um sentido negativo afim do que Keats entendia por capacidade negativa, fruto de um espírito dubitativo e contraditório, trazendo à consciência do mundo a possibilidade de se entreter mais do que uma hipótese, acreditar e não acreditar numa perceção ou sentença (a ironia romântica), suportar o medo de faltar o chão ou sermos engolidos sob ele, criar sobre isso com a secreta esperança de os mecanismos derivativos e regenerativos serem igualmente regeneradores. Portanto, o que me fascina no nonsense presente nos livros da Alice não consiste em ser tão-só um "dizer seja o que for" ("não é um facto que nas nossas interações com as pessoas ou a arte a natureza dos troços verbais nem sempre interesse" - diz-nos Tamen num livro em que tenta explicar a arte através de Alice), nem somente um contra-senso.* Michael Holquist, que escreveu muito sobre o nonsense em Alice, oferece vias de pensamento estimulantes mas chega a conclusões que ganham em ser polemizadas. Quanto a mim, Holquist engana-se quando aponta a Alice o erro de "a questão" ser "como se fazem as palavras significar tantas coisas diferentes", afirmando antes que pura e simplesmente significam uma só coisa divergente, quer do seu próprio sistema quer do sistema linguístico pré-existente.** O nonsense interessa-me porque me parece realmente dizer coisas divergentes sem as eliminar nem solucionar conquanto às vezes solvendo-as, mas também disponibilizando a recuperação da diferença, logo a possibilidade da mudança e de golpes de estados, esvaziamento de mundos e investigação de outros, de um modo tão sombrio quanto excitado.
A questão do ónus da prova não deixa de ser interessante para delimitar o nonsense: a sua validade é interna aos seus mecanismos, mas o mundo que cria existe, subsiste, ou não fora deles? E se é mentira no mundo mas verdade na linguagem, será nonsense só por si? Se faz algum sentido, ainda é nonsense? Tem de ser, porque há beleza nessa verificação do nonsense, a de que toda a linguagem é de alguma forma evidência, só não se sabe de quê. Veja-se o argumento do rei sobre o dilema de não se poder cortar a cabeça ao gato de Cheshire se ele não tem o (resto do) corpo: "that anything that had a head could be beheaded, and that you weren't to talk nonsense". Matemático, diácono, conservador e alegadamente amante da ordem ao nível do que hoje se diria OCD, Lewis Carroll aka Dodgson cria o perfeito nonsense-proof statement que o mundo não comprova. Que ter cabeça seja condição para se ser decapitado (ou descabecinado, como diria a minha explicadora de física quando me ralhava) pode ser uma falácia. Mas parece certo que ser-cabeçudo (be-headed) só pode acontecer a quem tenha cabeça. Ou nem tanto - se interpretarmos aquele had a head ao nível da homofonia, será que dois certos fazem um errado? Ou serão duas cabeças - bi-headed - ou uma cabeça sem corpo e outra decapitada, apenas half a head. Afinal quem está a dizer disparates? A insistência na cabeça faz parte de uma curto-circuito referencial do nonsense, ao longo do texto (por contraposição a uma cadeia referencial, nos tradicionais mecanismos de coesão), desde "não percas a cabeça" a "cortem-lhe a cabeça". O que se passa com o nonsense relativamente a outros membros e funções corporais, é igualmente fascinante. Mas no caso - temos cabeça, o que torna praticamente impossível a sua "se-paragem" - o universo imoral da linguagem do nonsense torna-se mecanismo de sanidade contra o medo da loucura.
— Se conhecesses o Tempo tão bem como eu, não falavas dele. — disse o Chapeleiro. — Falavas com ele.
— Não percebo o que queres dizer — replicou Alice.
— Está claro que não! — exclamou o Chapeleiro, abanando a cabeça com ar de desprezo. — Quer-me parecer que nunca falaste com o Tempo!
— Talvez não — confessou Alice, prudentemente. —Só sei que tenho de bater o tempo certo quando estudo música.
— Ora aí está! — disse o Chapeleiro. — Ele não suporta que lhe batam. Agora, se tivesses uma boa relação com ele, ele fazia o que tu quisesses com o relógio.
*Miguel Tamen, What Art is Like, in Constant Reference to the Alice Books. Harvard University Press, 2012, p. 46.
** Michael Holquist, What is a Boojum? Nonsense and Modernism. Yale French Studies, 1969, pp. 145-164
*** Jean-Jacques Lecercle, Philosophy of Nonsense: The Intuitions of Victorian Nonsense Literature. Routledge, 1994, pp. 112-114
**** António Lobo Anuntes e Daniel Sampaio. "" Alice no País das Maravilhas" ou a esquizofrenia esconjurada." Análise Psicológica 2 (1978): 21-32.
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