Talvez criança seja, como disse Helène Cixous também a propósito de Alice, uma "espécie imaginária inventada por um certo tipo de literatura psicológica, não menos do que 'menina' um "um complexo fantasma da invenção de Carroll" (234). Mas importa também o que ressaltou Robert M. Polhemus, sobre Carroll ter movido um dos grupos mais marginalizados da História, a criança, para o centro da existência - e da literatura, como comprova este ser pelo menos o primeiro livro para crianças contemplado por um ciclo de Grandes Obras Universais. Mais importa que essa criança seja uma menina, abrindo-se a este género o mundo de aventuras. Na verdade, Alice, como as protagonistas de The Goblin Market ou Speaking Likenesses de Christina Rossetti, surge em contraponto e às vezes reversibilidade com a figura da Rainha, que tudo possui, e que dificilmente podemos separar de Vitória, cujo reinado (1837-1902) foi praticamente co-extensivo da vida do escritor (1832-1898) e que, aliás, terá adorado Alice no País das Maravilhas. Podemos dizer que, independentemente de todos os paradoxos aliados à questão do império e do despotismo, o período vitoriano inaugurou o "girl power"? Ou que nisto haja que pesar bem a questão de "quem tem o poder"?
É também Helène Cixous que nota a singularidade de Alice ser escrita por outrem e, no entanto, pegar no lápis para subverter o memorando do rei, porventura uma marca metaliterária do subtexto corrosivo do palimpsesto, ou até psicanalítico incesto, de que se constrói e desconstrói Alice. Na verdade, Hélène Cisoux é uma entre muitos críticos e artistas que notam a sujeição e derrisão de Alice a várias estruturas opressivas* - assombrando desde o corpo da menina ao social e ao político (um exemplo notável é "Uma Alice" do realizador checo Jan Svankmajer, 1987). "A ficção aliciana aborda a crise da autoridade na vida moderna, sentindo-se os leitores compelidos a resolvê-la" (Polhemus, p. 604). Hipersensível a quem come e a quem é comido, são vários os momentos em que Alice acusa o poder e a exploração de outros bens e seres (sem deixar de ser lembrada, aqui e ali, de ela própria os praticar). É aqui que entra Alice a ativista - não que a de Carroll seja propriamente uma, mas ainda assim pela-se, já o disse, por golpes de estado.
Em todo o caso, olhar para Alice com os olhos de quem é hoje a A. Gato, a filha que nomeámos na esteira da que caiu pela toca do coelho (full disclosure - o pai chama-se Pedro Coelho) faz-me querer rever o texto traduzido especialmente nessas partes que hoje podem associar-se às alterações climáticas, suas causas e combates. Por exemplo, a corrida eleitoral com efeitos de secagem liderada pela ave extinta Dodó (que se afiança ser outro pun do gago Dodgson). Ou a aparente distração das presas "ostrinhas" em que consiste o ardil da Morsa para que ela e o Carpinteiro, seu partner-in-crime, chegados a uma orla deserta aparentemente esvaziada de outros autóctones e testemunhas, possam papá-las todas até não sobrar nenhuma: falar de muitos tópicos, incluindo "why the sea is boiling hot." O nonsense de outrora torna-se o absurdo com que vivemos agora. Mas se porventura o matemático Dodgson estava longe de calcular o aquecimento dos mares, há realmente vários sinais de que a exploração subterráquea de Alice destapa o aterro provocado por ambições imperialistas, coloniais e extrativas. Movida por estas intuições fui googlar e claro que encontrei quem já as tivesse tido. Há um artigo que se debruça só sobre a balada da Morsa e do Carpinteiro, "Natural Selection and Colonialism in Carroll's 'The Walrus and the Carpenter'" de Rebecca McNelly. Face às ideias da autora de que os versos perversos desta história glutona encapsulam todo um jugo transatlântico feito pelos senhores de sapatos e barcos, selado pelo lacre de correspondências reais, à custa de injustiças sobre os "simplórios" (significado slang de "cabbages", ainda que eu veja hoje no verso também uma alusão aos "counselors and kings" do episódio de Job ... e de Bartleby), até a ilustração de Tenniel ganhou novos contornos para mim. Comecei a ver a personagem agachada mais parecida com um missionário do que com um carpinteiro. Acho agora que devia rever uma tradução que há vinte e cinco anos fiz quando era uma pessoa de outras manhãs, com certa ilusão de que no nonsense não importaria o que fosse que se dissesse:
* Ainda que Cixous note também que no final de contas, "nobody wins, nobody keeps anything, but something happens and the text is produced" (234); a roca por que disputam Tweedledee e Tweedledum é o derrisório que marca a propriedade
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