Saturday, April 15, 2006

Female roles #1 (ou a goma nos naperons)


MORRE COMIGO ESTE SEGREDO

faz-se a renda juntando os quadrados
em fiadas, uns que se abrem e outros
que se fecham, é fácil mesmo de olhos
vendados, como agora nesta casa
onde vivo emparedada entre lágrimas
crónicas de cataratas e os ratos
que me atacam as crostas do telhado,
esta casa onde nasci e onde hoje
só a morte espera ainda que eu
já não espero nada, sepultado

o pânico da vida sem eventos
durmo de um só sono à noite com
os meus medicamentos e a Bíblia
à cabeceira, no canapé a colcha
por acabar que é para o enxoval
da filha da afilhada – tantas vezes fui
madrinha no altar, até dos manos
que vinham de visita aos domingos
mais as cunhadas prenhes e ufanas
sem saberem felizmente que a vida

que me não quis amada me fizera
amante insana em tempos pubescentes
nessa época antiga do recente
mênstruo empolgando os animais,
mergulhando-me e às amigas no
mistério das regras mensais do corpo
ainda irregular, nesse outro tempo
dizia em que um estrangeiro me apartou
das alegrias do gineceu e me deu
a conhecer o intranquilo apelo

que com desconforto rompeu
o retráctil selo do meu sigilo—
e porque ainda em flor fui desflorada
nunca mais quis eu o amor nem ser
casada, e portanto que escarneçam se
quiserem as cunhadas cobiçosas,
levem-me os móveis mas deixem-me a casa
onde fui nada e fui criada que sem
a deixar nunca me valeu o ganho
das rendas que me pedem de encomenda,

e em tudo o mais levo eu vida piedosa,
cumpro os ofícios na missa e recolho
o ofertório finda a homilia;
só eu sei da lingueta do ferrolho
onde fulgem as jóias da família.

1 comment:

Anonymous said...

Isto sim, é um poema.

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