Sunday, December 17, 2017

Sestina para Aurelia


Aurelia Plath, mãe, guardou entre os papéis
de Sylvia, filha, um ruivo rabo de cavalo,
puxo de cabelo cerce, ocorreu o corte
aos doze-treze, prenúncio duma morte
com sequelas. A angústia, uma tesoura
de ferro, escande, mancha sobre os retratos

todos, mesmo o da escola de arte, retrato
em três faces, tetraedros, grude em papel
sobre exóticas cores, vincos de tesoura,
talhado em esfinge o longo rosto de cavalo,
e algo de Índia e de karma, a má morte
que mãe alguma aguenta suspeitar, o corte

quando afinal ela era às vezes loura, o corte
quando tinha um mundo aberto, e nos retratos
ninguém a diz maluca, cortesã da morte —
de pequenina enfiada entre os papéis
ou nos bosques metida sobre o cavalo
Ariel, açulado, as pernas em tesoura,

assente quadril, livre rédea, tesoura
a toda a brida em direção à luz a corta-
-mato, a filha um só perfil com seu cavalo
em fogo e risco a lembra Aurelia —há um retrato
também de bicicleta e soquetes; os papéis
que ensaiou proliferaram, mas a morte

foi onde teve brio, Aurelia, ela jaz morta
e choram as mulheres, a parca co’a tesoura
daria até uma outra chance, outros papéis
se assim pudesse, um mais humano gás, um corte
em falso, mas a perda, mãe, face ao retrato
de antes não tem cura, a dor é um cavalo

torrencial, a tua filha é um cavalo-
relíquia inclemente da infância, a morte
é um mestre e levou-te todos, nos retratos
permanecem, pai e filha, uma tesoura
não aliviaria, por generoso corte
que aplicasse, há toda a sorte de papéis

e retratos, não há raízes para a morte;
pousa a tesoura, mãe sentimental que corta,
que faz um rabo de cavalo entre papéis?



Sunday, September 24, 2017

Bilinguismo

The window could take a scrub
but in bed it shed
fresh greenness
across the world from
where our limbs locked
tongues of tenderness
fighting losses.

A janela agradecia limpeza
mas entornava na cama
uma fresca verdura
atravessando o mundo
onde trancavam as pernas
nossas línguas ternas
contra algumas perdas
.


Wednesday, September 06, 2017

Este fruto o meu corpo

disse ela, dedicada,
“pele branca como a neve” por isso
ruídos de espinhos por isso este medo
pavor de crescer de ver
o corpo mudado em formas de pousar
as mãos curvas minha pele branca
como a neve por isso
o caçador ambíguo por isso
o coração terno por isso
o fígado colérico por isso
o tenro fruto alvo
que atravessa a úvula
dobrada de medo adormeço
abraçada ao abismo deslizo
na risca quebrada no espelho
sou a virgem a velha o fio
do punhal o caçador na floresta
a mãe à janela a lua a brilhar
a bruxa a estragar o fim
da festa
qual coisa carnal vulgar
rosa escura rosa rubra rosa
medusa brava a gritar
na noite um dom
todavia me unge
se insinua assim
porque não amor
caçador bom
quem parta comigo
este fruto o meu corpo
tomá-lo e comê-lo
que trago há tanto tempo
este sumo o meu sangue
tomá-lo e bebê-lo
que guardo por abrir faz
tempo no castelo
no trinco da garganta
na torre da neve
cujo morro inatingível
retoco com a boca, me movo
desengasgo, solto, escorro.

Wednesday, August 23, 2017

Caddy



Pensei imaginar-te outra vez nua entre
coisas brancas panos nuvens ovelhas e
camarinhas frutos pequeninos que os teus
dentes brancos ligeiramente inclinados
para a frente para um beijo para mim
trincam e tu tapas a boca com a mão
e cospes caroços desenhas nos lábios
um sorriso de vestal apanhada pelo sol

e tu à procura os meus olhos rasos
de assombro fundo rasos a sobrevoar-te
dentro do teu corpo maculado de ternuras
de ferida de raivas surdas de mínimos
tumores de marcas ausentes de todos
os amantes que tu não quiseste que
te quiseram morder tu não deixaste
até um dia te cansares de ser virgem

chegares a mim a tremer tu à procura
eu a detestar-te por alguém tinha de
haver alguém a quem detestar no teu
lugar em vez de ti se nem a mim ao fim
de contas tu não deixaste eu não pude
nunca tocar eu tenho os dedos brandos
mas só o silêncio grande os teus olhos
rituais mesmo assim mesmo quando

coloquei a minha cabeça no teu colo e tu
quase acreditaste e eu a querer-te vingando-
te cheiro a primavera pura nas tuas costas
dentes brancos frutos tu negaste nós as duas
a desejar que fosses talvez menos bela e tu
de desdém a beleza que te gastava tu sabias
e sabias e resignavas-te e eras um adorno
um risonho sacrifício de castidade passavas

a fingir que eras mais alta do que eu
eu consentia tu eras mais alta do que eu
e todos os que consentimos nos lembramos
de ti assim e fazem-se grandes rodas
de choro por ti e eu fico só choro-te só
a rasgar os retratos onde não apareces a
saudade dos teus gestos rendados das tuas
veias em teia à volta de dedos um rosário

de fios de lustro é assim que eu me lembro
de ti e os deuses olímpicos e os serafins
melindrados e todos quantos se lembram
de ti e ainda que se calhar nem sempre
tivesses nas mãos a claridade das violetas
eu recordo-te agora tinhas de certeza
violetas nas mãos quando foste embora
eu vi porque lá fora ainda havia dia.

Saturday, June 17, 2017

Um Castelo de Sonetos (VII)

Igual – algum recalque, grandes taras,
segredos venenosos na família
vis membros tolhidinhos que desfilam
e tornam púdica a delícia e esparsa.

Lançam limos, lianas ao futuro
vários laços no centro de uma nora
com eixo na cabeça e mó em nossos
corpos um fogo denso muito escuro

por entre escamas — um belo invólucro
de radiosa prata que tilinta ­
e silva — que tanto a beleza ofusca

o quanto devotamos ao seu logro.
Daí a pele soltei, arisca e tosca

roí-te o ardil mental, fugi aflita.

Um Castelo de Sonetos (IX)

9. Não mais dest’arte o génio iludido
ó muso Lauro, Beatrizo, bárbaro
dantesco emparedado pelo Tártaro,
Lenoro do sepulcro redivivo!

há raios muito grandes fogos presos
em fumos vários crio teu perfil
e faço — para não te deixar ir —
em serpentina todos estes versos

com regras que de cor dobro, corrompo
e busco língua nova que destape
a tumba hetero-sapiens do discurso.

Sonsa te uso, pois: por contraponto —
mas queria um só risco que nos cante
dum golpe fundo iterativo e brusco.

Friday, June 09, 2017

Um Castelo de Sonetos (IV)

Que me façam à hora vária e rara
crateras sombras mares semiluas
caudalosas torrenciais eclusas
franqueadas do degelo anteparas

do dilúvio eu vedora vara
eu poço-lodo octópode lacustre
eu caravela-raia eu bicho-luz
do espírito eu cerne eu tâmara

eu crescente fértil eu enrolada
em folhas de parreira eu marraquexe
mirra ouro fel hiena do zagrebe

zebu mãe ubu peluda emplumada
poção com todos escura irisada
tremura de prazer sólida febre

Wednesday, May 10, 2017

Não está fácil

nadar sem pé durante horas
sem dormir e nas costas
tantas léguas de cansaço
apetece dar um estalo à ilusão
não sou quem procuras mas
pensei (tarde demais) ser
quem encontraste e dizer
"a tal hora" estou aqui
com meus limites todos
para ti, repito que se gosto
de ti te quero feliz é elementar
sou responsável pelo meu descanso
devo a quem cuidar
sei respirar na perda já
cantar o coração a morder
o vazio, deixo a porta
por enquanto no trinco
não sei fechar o que tive tanto
de empurrar para abrir
embora não precises
sabe que fico perra
que a ferrugem dói
forcei demais não creio
ter fingido, faz uma flor
o ar nas frinchas
vou bordar de novo
meus A! de aflita
não sei dar
outro uso a isto
senão bonitos gritos.

Monday, January 23, 2017

O regador e a prisão

Rego as plantas do poeta que guarda prisões
trepadeiras desmaiam, suculentas não obstante
medram, a erva-dos-gatos descabela-se
de um tupperware — pois terá havido
um gato e donos que fizeram filhos
e um caramanchão no terraço onde faz tempo
houve soalheiro remanso e excepção à tortura.

Nas estantes sem leitura restam muitos livros
e o aquecimento central continua em dia
sem gente intra-muros para tanta literatura
é melindroso: a inclinação para descorar
o viço, a ferrenha minúcia da agonia, as
celas quase vazias — como má transladação
o regador prolonga a pena, comuta a vida
.

Monday, January 09, 2017

e. e. cummings na berlinda

may i feel said he

se posso disseste só desta disse
eu que estranho tu gemes que giro
fiz eu (tocar-te quiseste prefiro
que leve tu tentas lá longe) insistes

‘tá bom não anda tu pedes aonde
digo eu mais baixo apontas atalho
com beijo te mexo te pico tocá-lo
no ponto remexo enches respondes

me amas me matas digo é a vida
replico és casado e entras e oh
que tem não pares se sentes me diz

que máximo vens mas lento tem dó
já chega tesão mhumm como és linda
tu tombo eu grito cabrão infeliz
.

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