Friday, August 17, 2018

Atirar para o torto



Quando eu nasci a última guerra mundial tinha sido há vinte e cinco anos
a colonial ainda tinha minas
a minha idade é mais do dobro desse tempo nesta paz
sinceramente agradeço mas as coisas não convencem
como a tosse sempre na garganta o escorrega acentuado
da esperança e viver como julho temporão quando passou
já o dia mais longo custa trabalhar o vento tem grão a lua
zomba amarela cada hora mais matrona as melgas rondam todas
as atividades parecem besuntadas de creme contra
a exposição solar as picadas do peixe-agulha a comichão
da caravela portuguesa não é a sabedoria que se ganha
a ternura que se conquista uma ova é esta película
de gordura entre nós e o mundo os tornozelos
inchados no lodo do mar morto
a sabedoria aliás não tem nada que a recomende

eu que o diga que fiz estudos
ganhei uma cadeira de armar à sombra da academia
e quando o rei faz anos espremo as tetas
da poesia de cada vez o leite é mais ralo
o soro nem vê-lo de resto dane-se para quê
a inoculação? já agora o direito internacional que nos vale
as costas direitas para dizermos que não cabem
não há cais nem margem não há cá piedade
que chegue para os povos das partes baixas do mapa
felás infantis logo querulentos garotos famélicos
grávidas desidratadas gente que nos olha
por cima da burra com pragas e mil vícios
isso não é bonito

vêm com o pacote agora desembrulhe-se
tanta hubris esta bílis se calhar é o valor fiduciário
sei lá eu sou das letras tudo passa
sem os meus palpites a minha pieguice pouco faz
em justiça nem sequer dá alívio o que eu devia
não era reclamar era convocar o imoderado dilúvio
quando não a mocidade a inocência
chamar com a fé decorosa da oração
inundada cheia que valha nos esparza
nos faça anfíbios entre os anjos e os bichos
sei lá eu fácil saída fraco remédio
para a catástrofe
unguento inócuo da nossa dor
se calhar faz parte do problema
o pejo conservador que no poema se cante
um exultante afogamento

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