O poeta convoca
com um gládio em riste
Seu século,
atónito por não ter previsto
Que nessa estranha
voz triunfava a morte!
Eles, como a hidra
que, torcida, ouviu
O anjo apurando o
sentido de gentias
Palavras,
gritaram ser aquilo heresia,
Peçonha vil
bebida a desonroso rio.
Ó desgosto, do
sol e da nuvem adversos!
Se não cinzela
nossa ideia um relevo
Que o túmulo de
Poe eleve com fulgor,
Bloco à terra
descido por azar obscuro,
Ao menos o granito se erga com rigor
Contra esses
fumos da Blasfémia no futuro.
[No primeiro verso, Mallarmé, que se estará a referir àquilo que não só Baudelaire como outros incluindo Amadée Pichot, Rollinat e ele próprio fizeram por Edgar Poe (o maior caso de ménage amorosa na história da literatura), condensa aquilo que George Steiner designa como restituição. Esta é para ele a última e rara fase da tradução. Para a definir, colhe inspiração no que Walter Benjamin (1923/1968) designou como "sobre-vida" (Überleben em alemão, não tão distante em si da palavra para "traduzir"; Übersetzen, colocar por cima). Steiner fala em encontrar no texto "algo novo que já lá estava" (1998: p. 102), o que implica, parece, pelo menos uma semi-crença romântica na possibilidade de se irem encontrando os sentidos do puzzle do grande poema, ainda que o autor de Depois de Babel se queira salvaguardar contra a leitura mística da sua proposta.
Volto, por isso, à intuição de que os tradutores são os pragmáticos do romantismo. E estou em crer, camaradas, que o ensino da tradução tem por conseguinte a ganhar com trazer o espírito à equação, bem como um discurso de iluminação (mas não de despotismo iluminado, porque precisamente virando de avesso a autoridade de um original). Ou não é a metáfora uma coisa do espírito ou não é o entusiasmo um aliado motivacional da experiência literária?
Ter entusiasmo encontra uma das suas manifestações em estar entesoado/a, partindo da esperança que venham ambos de enthous, em possessão inspirada, um endeusamento. Na aparente heresia, vale a pena ir buscar a Benjamin outro termo, o de "iluminação profana"(1929) para descrever a experiência de estranhamento pela qual, em certos estados oníricos, reparamos nos objetos esquecidos (tornamos a parar, neles tropeçando) da realidade quotidiana. Daí se justifica que a tradução deva fazer ao poema o que este faz à experiência ou ao sonho. É o que leio "No Túmulo de Edgar Poe" de Mallarmé: a tradução como o anjo que apura o sentido de gentias palavras. O francês diz "Donner un sens plus pur aux mots de la tribu" mas "dar um sentido mais puro às palavras da tribo" não rima no português do soneto. "Gentias" vem de Camões, que - defende quem o traduziu (Landeg White, refletindo sobre os seus Lusiads) - foi o primeiro a chamar "gente" àqueles que os seus contemporâneos chamavam nativos, selvagens e bárbaros.*]
*assim traduziu White "a estrangeira gente e estranha usança" por "these new ways of being human".
[No primeiro verso, Mallarmé, que se estará a referir àquilo que não só Baudelaire como outros incluindo Amadée Pichot, Rollinat e ele próprio fizeram por Edgar Poe (o maior caso de ménage amorosa na história da literatura), condensa aquilo que George Steiner designa como restituição. Esta é para ele a última e rara fase da tradução. Para a definir, colhe inspiração no que Walter Benjamin (1923/1968) designou como "sobre-vida" (Überleben em alemão, não tão distante em si da palavra para "traduzir"; Übersetzen, colocar por cima). Steiner fala em encontrar no texto "algo novo que já lá estava" (1998: p. 102), o que implica, parece, pelo menos uma semi-crença romântica na possibilidade de se irem encontrando os sentidos do puzzle do grande poema, ainda que o autor de Depois de Babel se queira salvaguardar contra a leitura mística da sua proposta.
Volto, por isso, à intuição de que os tradutores são os pragmáticos do romantismo. E estou em crer, camaradas, que o ensino da tradução tem por conseguinte a ganhar com trazer o espírito à equação, bem como um discurso de iluminação (mas não de despotismo iluminado, porque precisamente virando de avesso a autoridade de um original). Ou não é a metáfora uma coisa do espírito ou não é o entusiasmo um aliado motivacional da experiência literária?
Ter entusiasmo encontra uma das suas manifestações em estar entesoado/a, partindo da esperança que venham ambos de enthous, em possessão inspirada, um endeusamento. Na aparente heresia, vale a pena ir buscar a Benjamin outro termo, o de "iluminação profana"(1929) para descrever a experiência de estranhamento pela qual, em certos estados oníricos, reparamos nos objetos esquecidos (tornamos a parar, neles tropeçando) da realidade quotidiana. Daí se justifica que a tradução deva fazer ao poema o que este faz à experiência ou ao sonho. É o que leio "No Túmulo de Edgar Poe" de Mallarmé: a tradução como o anjo que apura o sentido de gentias palavras. O francês diz "Donner un sens plus pur aux mots de la tribu" mas "dar um sentido mais puro às palavras da tribo" não rima no português do soneto. "Gentias" vem de Camões, que - defende quem o traduziu (Landeg White, refletindo sobre os seus Lusiads) - foi o primeiro a chamar "gente" àqueles que os seus contemporâneos chamavam nativos, selvagens e bárbaros.*]
*assim traduziu White "a estrangeira gente e estranha usança" por "these new ways of being human".