Saturday, April 27, 2019

Confissão pascal

Gosto de terraços, andares elevados
com vistas de luz, horizontes de ondas, certas asas contra
céu de lilás nublado ao ocaso da ponte no regresso
ao cosmos como conchas de íris, colchas de retalhos
do turvo coado quando se separa a limpidez
Gosto de sossegados mirantes com reflexos róseos
gasosos
de espumante

Nunca quis uma herdade uma horta um herbário
por mais que me comovam os sobreiros nos montados
as azedas claras prímulas margaridas zonzas borboletas
a seda em especial dos cravos, a surpresa vermelha das papoulas
Meu campo de há muito é a minha bicicleta
com um desígnio de duna ao fundo e por baixo dela imensa
a rouquidão do mar meu esforço de corpo penetrando-o
a frio, em pelo, até à solução
da sede na pesada transparência

Aquartelei temporariamente em barcos onde conheci o mergulho do alto
no azul traçado por apitos de intangíveis mamíferos

e namorei marinheiros motards estrangeiros
eruditos oitocentistas com pretensão de artistas
amantes de música que dedilhavam os instrumentos
para me afastar dos amigos que voltaram quase sempre
com motejos de bobos suicidas — generosos bombos
espalhafatos de bolbos e urtigas

Também gosto de comboios e dormi duas vezes
com um maquinista de elevadores
fora o fraco que tenho por designers, fotógrafos
documentaristas, operadores de câmara, que sendo meio 
cega lhes animo deslumbres pornográficos
ao passo que a mim convêm os disparos (nem sempre
acabei por cima, vezes houve

força que me pôs de rojo me suprimiu ar
embora hoje a carne fale menos ou cale quase 
posso regular melhor aprender a domar 
vaipes abortar rancores tendo remorsos vários
a idade é um poço mas dá à viagem da dor o antídoto
da bondade se bem que raramente veja nisso vantagem)

Recordo ainda quando fui gajeira subi a
enxárcias até ao cesto onde comuniquei
por morse as manobras ao meu primeiro interesse romântico 
e ele pouco após
sucumbiria de vício que eu não sabia

mas uma vez se tanto escalei uma árvore
para me pedires abrigo naquele cair da tarde
contigo — não numa casa foi um quarto
numa pensão ronceira à praça com o nome mais nítido
da cidade prometida 
no cimo da colina onde fizemos amor contra 
lavabos sem asseio contra 
telhas esconsas de musgo a chuva miúda contra
o termos acreditado ternos e marcados que o
iríamos repetir por toda a vida

Se eu fosse comedida nesta cena pararia o balanço 
e por que não? vou ser 
se parece o poema conseguir aqui um pouco
endireitar o torto
na confissão não se canta em revista ao que se deu
e desfez não basta não nos oferece pena para saber
nem a parte mais díspar e rápida
e sumida

do que nos intriga ou ferindo ressuscita

Jasmim







outros têm solas fortes cascas
como anéis por anos de árvores —
mas tu és de pé só
flexível quanto quebrável
à inclemência de fora

perene amareleces o inverno
raspa-te tu reflores em pontas
mudas suscetível e valente
o teu perfume é ébrio
e após tempo maças

difícil transplante passas
o vaso todo sentes tanto
armado contra a barreira
com fisga de atilho e cana
em prumo à brisa te lanças

pouco exigente de solo
fito de insídia e tisana
rompida renda            invasora esperança



[Aprendi com a língua inglesa a cortar exdrúxulas com o acento monotonal. No substrato do barroco, eu quero um coração tribal. Mas com esta dureza de ouvido não se justificam os vários anos de teclas e solfejo lambido com os dedos.]


Wednesday, April 24, 2019

Bom 25


números da revolução

25 de abril
45 anos de abril
75 cêntimos por cravo de abril
6, 75 cêntimos 9 cravos de abril
1 por lustro (9 x 5 = 45)
- 5 cêntimos (porque a florista da funerária do alto de são joão - era longe mas é verdade, os outros dois floristas mais próximos decidiram feriar prolongadamente - só conseguiu dar troco em benefício da compradora)
0,555555555555556 cêntimos é o excesso do pé
sem arranjo

Monday, April 22, 2019

unvoice what is said



Só os covardes vivem
como manda o livro, do desas-
sossego      deserdando    o
menor dos tremores. Tudo in-
sípida superfície, desabam para
dentro. Em que lado   da bús-
sola me encontro? Magma-
nico, meu coração vulcânico.
Se colidissem as palavras umas
com outras mais vezes será
que o mundo seria melhor?
[Embrulhada no impermeável
roxo,    esperava nas estações
embalando a língua tisnada
de café até voltar ao doce travo
das víboras.] Arranquei uma folha
das tuas e     escrevi     sobre ela.

Nada    me  dói
                     o     vento
de  oeste  a  leste
       uma  passadeira           esta cidade
página      a página               herdada,
       como um temporal se
           finda.
Pensar    amoralidade
  alcançar               nudez
        ter      lucidez.
Eu    não perdi nunca
       o trémulo instante
       do  teu    corpo
           assolapando
         meu  apagamento
           branco



Sampurna Chatarji

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