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Jorge,
o Minotauro não escreveunenhum verso e não há nenhuma
prova de que conseguisse
ler. A conclusão é
óbvia. Não o conseguias ler
e ele não te conseguia ler.
E como ele não te conseguia
ler e tu morreste antes de
eu escrever, nenhum de vós
me consegue ler. Então,
cá estamos. Só resto
eu para te ler, e
faço-o de bom grado, e só
resto eu para me ler.
Isso, também, farei, por mim,
por ti, e pela besta também.
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Post-Scritptum
Quando o Minotauro morreu
Lamento informar, ninguém
O queria embalsamar. Certo
Com ’ó raio, o filho da puta
Era Gémeos, meio touro,
Meio humano. Mas depois
Da sua morte, toda a gente
Engoliu a sua mensagem bestial.
G. Monteiro, "A Conversa de Café" (The Coffee Exchange", 1982)
George Monteiro morreu. As respostas que se sucedem ao email que circulou esta manhã com a triste notícia testemunham que isto das comunicações rápidas e dissemináveis também tem a sua luz: a de um memorial coletivo. Mesmo assim, quantas pessoas em Portugal, descontando aquelas a quem tocou e ajudou (e são tantas), saberão quem foi George Monteiro? Foi um professor militante dos estudos ingleses e, além disso fez o mais que pôde, na Universidade de Brown e nas inúmeras publicações que nos deixou, pela literatura portuguesa, por Pessoa, por Rodrigues Miguéis, por Jorge de Sena, e ainda - e nada pouco - pela herança portuguesa que mantêm e recriam os autores luso-americanos (dizia ele, sobre isto, com a sua meiga ironia: "não é nenhum titânico assunto melvilliano, mas alguns de nós afeiçoam-se-lhe").
Esta que não se assina conheceu George Monteiro por volta de 2002, quando iniciou o doutoramento sobre Poe em Portugal, e porque outra formidável académica/mentora lho apresentou, intuindo que daí sairia algo de bom, já que Monteiro acabara de publicar Fernando Pessoa and Nineteenth Century English Literature, e eram conhecidos o seu "faro" de arquivo e a sua inteligência em matéria de "afinidades literária" (bem como o humor para os respetivos mexericos). Isto foi em Lisboa, numa das suas muitas mas curtas passagens. Semanas depois, pelo correio (então o correio-caracol) chegou um envelope maçudo. Lá dentro, cópias de todos os papéis inéditos de Pessoa que George Monteiro encontrara nos reservados da BN a respeito de Poe. A generosidade, espontânea e trabalhosa e praticamente imprecedente no meio académico, de George Monteiro, era o seu dom.
Para um homem de tanta gentileza e discrição, não deixava de surpreender a sua admiração íntima pela truculência de Sena. Os versos acima são dois excertos do seu longo poema "The Coffee Exchange", escritos em paralelo com a tradução que fez de "Em Creta, com o Minotauro." Este post podia, portanto, chamar-se "Os Dois Jorges". A tradução que apresento resulta de um trabalho colaborativo de alunos da FLUL e está incluída em Nem Cá Nem Lá Mas Também: Portugal e América do Norte Entre Escritas (2017). Acrescento capas de alguns dos muitos livros de George Monteiro e, a seguir, a nota biográfica constante do volume atrás mencionado. Além do que lá vem escrito, diga-se que deixou também poesia esparsa, cáustica e dedicada. Que os Jorges descansem em paz e que o Minotauro desassossegue os leitores futuros.
George Monteiro nasceu na aldeia de Valley Falls em Rhode Island, filho de emigrantes portugueses, a mãe de Vila Ruiva da Serra e o pai de Freixo-de-Espada-à-Cinta, tendo ele próprio passado, desde os seis meses, parte da infância em Portugal. Formado pelas Universidades de Brown e Columbia, dedicou-se sobretudo a uma produtiva e multifacetada carreira académica. Sendo as suas habilitações em Estudos Ingleses, publicou diversos ensaios sobre autores da viragem do século xix e modernistas, como Stephen Crane, Emily Dickinson, Henry James e Elizabeth Bishop. Veio entretanto a interessar-se por autores de língua portuguesa, designadamente Fernando Pessoa, de quem é um reputado investigador, com publicações como The Presence of Pessoa (1998), Fernando Pessoa and Nineteenth-Century Anglo-American Literature (2000) ou, mais recentemente, As Paixões de Pessoa (2012). Tornou-se diretor do Centro de Estudos Brasileiros e Portugueses da Universidade de Brown em 1975, e é, com Onésimo de Almeida, professor na mesma universidade, um dos precursores dos estudos luso-americanos, tendo trabalhado muito pela divulgação e incentivo à produção da literatura em trânsito entre Portugal e os EUA. Traduziu, entre outros, Miguel Torga, José Rodrigues Miguéis, Fernando Pessoa e Jorge de Sena.
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