1.
Urgentemente te invoco,
De lá, de onde estás, entre móveis e tapetes,
Entregue aos deuses domésticos, se-
parada atormentada traída carne
(Poderei explicar?)
Invoco-te quando crepitam os movimentos da natureza, quando as flores desabrocham sementes no ventre da terra
E quando se estendem as sedentas línguas verdes para as (poucas) gotas nocturnas — invoco-te.
Quando vemos de noite a aspereza das manchas negras rasuradas no céu
(Quando de noite nos deitamos sob as rosáceas dos pinheiros e sentimos que o orvalho vai nascendo e quando e como)
Quando de dia a chuva verde, coagulada,
Quando descobrimos certas árvores e com elas descobrimos certas cores
Quando descobrimos exactamente antes da tal Primavera a intensidade do lilás à flor dos rebanhos de choupos que bebem junto aos rios
Poderemos dizer — diz-me se poderemos dizer — ser o corpo das mulheres a pele que querem dizê-lo?
Mesmo quando expele o poder mágico de muitas gotas pressurosas?
Muito se disse sobre a Primavera
E sobre o mês em que começa Abril ou Maio
(«Ó mês crudelíssimo», o mais cruel! Ó doce mês,
«Quando em Abril as doces chuvas caem»!).
Mas Abril é o mês das marés intensas
............................ Perante isto
Que corpo de mulher é pele fotográfica?
Eu vejo sob os vestidos finíssimos
Vibrar toda a alma dos músculos
E, sob filas de castanheiros,
A passar, duas mulheres ternamente enlaçadas
Vejo sobretudo cinco dedos duma delas pousados sobre uma anca improvável.
Ó maré viva
Invoco-te desse murmúrio doméstico onde estás
Entregue aos furiosos manes
Sou um soldado,
Como todos os soldados sinto
A doença adolescente do corpo
E segundo dizem vivo em comunhão com a natureza
E os músculos me doem
Contra a terra quente e húmida
Contra a ditadura dos choupos e dos eucaliptos e das pseudo-acácias comendo-me hora a hora
O sono das noites não dormidas
2.
Vi passar nuvens talvez
Para sul do Tejo
A várias horas da tarde
Chovia um como tinir de metais moles
Contra vidros e janelas ali à volta
À volta das três da tarde
Diz-se que agora o povo escreverá
Aos ministros a perguntar
Pelos lucros e pelas perdas
Diz-se que há pedidos e exigências e
Uma infernal vozearia e é bom
Diz-se que há manifestações a meio dos Clérigos
E que um amigo nosso morreu e que alguém fez streaking por ocasião do 25 de Abril
Mas no dia 1 de Maio, vizinho dos ratos, seu parceiro de civilização
Vim a saber que as nuvens que corriam talvez corressem para sul do Tejo
Conhecia Lisboa por ouvir dizer e vim aqui ter sem saber ao que vinha
Deixai-me que vos diga aprovo que o regime caísse eu que vivo entre ratos
E como (que o povo saiba) em pratos de lata e em mesas lavadas à mão com mãos lavadas contra a farda
Que o regime caia pois que nos apodrecia
Que caia e caia cem mil vezes pois que tinha que cair
E que vá para o inferno o raio do regime (que corra para o mar por esses esgotos)
Que caiam os grandes da terra pois é bom ouvi-los fazer o barulho de caírem
E já era tempo de petiscarmos um pouco de ilusão de justiça
Mas eu vivi entre merda e na merda vivo
Eu vivi oito dias no meio da porcaria
Vendo passar os rapazes dos sindicatos
A malta proletária e grandes mulheres operárias em camionetas de excursão vindas dos arredores
Ou em carros de camaradas
(Havia também um pouco de sexo cheirando no ar: sexo simbólico, claro, pois tudo são símbolos)
E não pude ser aqueles que passavam
E não passei, saudando os soldados que ali estávamos, saudando
A queda dum regime odiado
3.
E tu sociedade civil que sabes tu
Dessas palavras que são
O nosso pão-nosso de cada dia
(O morteiro-60, o lança granadas foguete,
Essas chaimites ameaçando o Carmo)
Teu mero dicionário simbolista
Que sabes tu da dura vida dos soldados
Ou dos postos do exército
Que sabes tu dos generais
4.
É como digo
A carne é triste quando a traem a carne é fraca
Se me fosse dado dobrar realmente os ombros decerto os dobraria
Pois a carne é fraca o flanco dói como a dor
Da faca que nos inflama o flanco
É certo que a carne dói é o que nos dói mais... às vezes...
Pois viveremos entre ruas dedicadas aos heróis da finança
E todos os dias nos traem
Ouço dizer que as cidades aclamam o general
Passam mulheres de incerta idade indefinidamente seguidas por cães da província
E em verdade vos digo nos últimos tempos sonho agora com filmes a cores
Filmes verdadeiramente pornográficos
Que prazer terei eu senão este em que nos encerraram
Capitães e generais entregues à fúria da razão pura
Aí onde estive estarei por força
Oh loucura diz-se revolução o movimento dos corpos que nos últimos tempos passam sempre pelos mesmos lugares comuns
E não era isto que eu queria
É como te digo a carne é fraca e a minha então
Todo este bricabraque
Air conditioned nightmare (sim: égua nocturna
Negra se possível deixa-me devorar o teu flanco sei que passas correndo)
Odeio todas as turistas e o seu folklore
O pão tostado da pele, os collants, as blusas verdes, saias vermelhas, as coxas nervosas, o rímel, a base,
E também o descarado pudor das raparigas da província
(Os turistas passam em grupos, em autocarros, a pé, seguidos indefinidamente por cães sempre os mesmos da província) As cidades aclamam o general
Manuel Resende in Natureza Morta e Desodorizante, 1983